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A possibilidade da eutanásia no Brasil

Por Claudia Trindade da Silva (*) | 26/04/2024 13:30

A palavra “eutanásia” vem do grego e significa “boa morte”, ou seja, morte sem dor, sem sofrimento ou morte digna. O termo foi usado pela primeira vez em 1623 pelo filósofo inglês Francis Bacon em sua obra “História da Vida e da Morte”. No entanto, o instituto da eutanásia remonta à idade antiga, quando a conduta objetivava não só o alívio do sofrimento como também a eliminação de pessoas consideradas como possíveis aberrações pela família ou pelo Estado.

Na Grécia Antiga, os filósofos Sócrates, Epicuro e Platão defendiam a ideia de que aquele que fosse acometido por uma doença que lhe implicasse sofrimento insuportável estaria diante de uma situação na qual o suicídio seria plenamente aceitável.

Na Roma antiga, havia a possibilidade do Senado julgar casuisticamente os suplícios daqueles que estivessem em sofrimento, e também havia nos circos romanos o pollice verso, quando, por compaixão, os Césares mostravam o polegar para baixo, autorizando o ato de abreviamento da vida de gladiadores mortalmente feridos nos combates, presenteando-os assim com uma morte honrável e menos sofrível.

Em 1919, o médico francês Binet Sanglé propõe a regulamentação da prática eutanásica através de sua obra intitulada “O direito de morrer”. Sua proposta sugeria a criação de um Tribunal constituído por três profissionais: um médico, um psicólogo e um jurista. Caberia a esse Tribunal avaliar a situação casuística do indivíduo, conforme as possibilidades de cura da doença e o intenso sofrimento causado ao seu portador, e posteriormente autorizar a prática da eutanásia nas instituições especialmente destinadas a isso.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a perspectiva eugênica da eutanásia foi disseminada pelo governo nazista – a partir do livro intitulado “Da Autorização da Eliminação de Vidas Carentes de Valor Vital”, publicado em 1920 pelos autores alemães Alfred Hoche, médico psiquiatra, e Karl Binding, criminalista. Essa perspectiva contaminou o tema da eutanásia na idade contemporânea com os receios e medos decorrentes desse período sombrio, violento e totalitário.

Contudo, superado esse período com o avanço civilizatório da garantia dos direitos humanos, os estados democráticos se depararam com a necessidade de regular tal conduta, uma vez que a terminalidade e o sofrimento fazem parte da condição humana.

Diante dos recentes movimentos legislativos que estão ocorrendo em diversos países do mundo ocidental, além do crescimento da população idosa e do prolongamento da vida através da biotecnologia, a retomada do debate acerca da eutanásia é atual e se mostra relevante.

Recentemente, em 18 de março de 2021, o Congresso dos Deputados da Espanha aprovou a Lei da Eutanásia, que estabelece o procedimento e as garantias fundamentais que devem ser cumpridas para que a pessoa receba a ajuda necessária para sua morte assistida.

Esse é um grande avanço em matéria de direito às garantias fundamentais, direito à vida, à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Assim, a Espanha se torna o quarto país europeu a acolher a morte assistida, após Holanda, Bélgica e Luxemburgo – e seguida posteriormente por Portugal.

Na América Latina,  a Colômbia é o único país no qual a eutanásia é permitida. No Brasil, o debate sobre o tema ainda carece de atenção e boa vontade para seu desenvolvimento. O assunto envolve uma gama de direitos constitucionais fundamentais, desde a proteção da vida até as liberdades individuais.

O estudo comparado acerca do tema é atual, não só pelos crescentes movimentos pela descriminalização da prática da eutanásia que estão ocorrendo em vários países ocidentais, mas também por ser de extrema relevância para que se torne possível transpor a barreira do evitamento da discussão de um assunto ainda considerado tabu.

Assim, faz-se necessário fomentar a reflexão jurídica e bioética a fim de contribuir para que o direito à morte digna seja viabilizado aos cidadãos nos seus próprios países, sem a necessidade de recorrer ao “turismo da morte”, como já ocorre na Suíça.

O tratamento normativo da eutanásia na Espanha apresenta a necessária dualidade jurídica de despenalizar a prática da eutanásia e ao mesmo tempo regulamentá-la. Assim, através do estudo comparado, o Brasil pode beneficiar-se da experiência de outros países para a abertura progressiva ao debate da regulamentação da morte digna.

Trata-se de assunto inevitável e que se mostra cada vez mais urgente diante não só do aumento da expectativa de vida da população mundial, mas sobretudo devido ao prolongamento da vida proporcionado por tratamentos inovadores diante dos avanços da biotecnologia, o que acarreta muitas vezes no prolongamento do sofrimento humano.

Manifestamente, não se trata de negar os benefícios indiscutíveis do avanço da tecnologia na medicina, mas sim do exame cuidadoso acerca da linha tênue entre a garantia da vida per se e a garantia da sua qualidade e do bem-estar do paciente, conforme a proteção dos Direitos Fundamentais e o respeito aos Princípios Bioéticos.

Salienta-se que o debate proposto acerca da descriminalização e regulação da eutanásia no Brasil não enseja uma solução para problemas sociais, econômicos ou mesmo para problemas decorrentes dos desafios estruturais do sistema de saúde. Outrossim, conforme leciona Orlando Faccini Neto em sua obra “Questões morais e direito penal”, a aceitação jurídica do comportamento justificado também não deve implicar em seu estímulo.

Ademais, conforme destacam Luís Roberto Barroso e Letícia Marte no artigo “A Morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida”, as pesquisas desenvolvidas em países que regulamentaram as práticas de morte assistida constataram que a opção pela eutanásia e pelo suicídio assistido foram substancialmente reduzidas.

(*) Claudia Trindade da Silva é graduada em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da UFRGS e em Relações Internacionais pela UFSM.

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