Geografia da Saúde e o destino de nossas cidades
No início da minha graduação, em um dos primeiros trabalhos de campo, no ponto de parada de Santa Gertrudes, interior de São Paulo, a Profa. Dra. Sandra Pitton, expôs o seguinte cenário: O município apresentava altas incidências de doenças respiratórias e, como tal fenômeno, se relaciona com as atividades econômicas do mesmo, vista que estava no Polo Cerâmico. Foi a descoberta da Geografia da Saúde, pelo menos para mim.
Integrando dados de visitas in loco e de bases governamentais, variáveis físicas, sociais, ambientais e políticas, utilizando metodologias de análise e tendo os mapas não apenas como uma imagem de apoio, mas como meio para o entendimento integrado, pode-se não só descrever ou entender um fenômeno, mas possibilitar que pessoas, empresas e os gestores públicos tomem decisões que alterem a vida – e sua qualidade – como a poluição por particulados da indústria ceramista.
Este olhar geográfico, o qual a professora sempre dizia que iríamos desenvolver ao longo do curso, não é algo intangível, mas que pode se explicar, por exemplo, com o subtítulo de um dos livros que conta uma história real que “mudou o destino de nossas metrópoles”. O livro ao qual me refiro é “O Mapa Fantasma” (Steven Johnson, 2006) que narra o surto de cólera em Londres em 1854; um surto que levou à morte mais de 600 pessoas em poucas semanas, mas que com visão à frente de seu tempo, um médico, Dr. John Snow, além de a interromper, trouxe luz à problemas – e ações de intervenção no território – que levaram à novas formas de se pensar a organização dos espaços e serviços públicos, como a distribuição de água e coleta de esgoto.
Naquele momento, em que os métodos de saúde eram precários, o Dr. Snow (sem suporte da teoria microbiana, desenvolvida alguns anos mais tarde) não conseguia sustentar evidências que as mortes em Londres, por seguidos surtos de cólera, eram causadas por poluentes no ar. Munindo-se de observações de campo, técnicas estatísticas e análises espaciais, ele pôde correlacionar o maior número de mortes em uma região específica do distrito de Soho pelo uso de água contaminada, servida pela bomba d’água da Broad Street (antiga Broadwick).
Mesmo com manifestações populares contra a interrupção no fornecimento de água e indo de encontro ao status quo científico e religioso, as observações, análises, relatórios e ação colocada em prática foram corroborados com a diminuição, em poucas semanas, das mortes e fim do surto, comprovando a relação entre esta, a localização do fornecimento de água e os consumidores. Observação, campo, dados, análise, integração e painéis de decisão: assim foi o case de 162 anos atrás. Por que nossos gestores – e até especialistas – ainda estão distantes destas aplicações?
Por meio diversas fontes e naturezas de dados, como os sistemas dos órgãos municipais, que alimentam bases governamentais, como o DataSUS no caso da saúde, entendimento local com agentes em campo, informações atualizadas permanentemente pela população, mídias sociais, pode-se revelar padrões e nuances dos fenômenos sócio espaciais que são invisíveis mesmo aos olhos mais treinados, mas que por meio de integração de pessoas e sistemas, mapas, apps, ferramentas de suporte à tomada de decisão, em ambiente colaborativo e acessíveis aos níveis técnicos, gerenciais, de planejamento, executivo e político, estão disponíveis hoje para melhoria em múltiplas dimensões, incluindo ajustes fiscais e financeiros, com uso racional dos recursos.
Dr. John Snow, considerado o pai da epidemiologia moderna, do Geoprocessamento, dos infográficos e do avanço da Geografia Médica e o desenvolvimento da Geografia da Saúde, esta com maior preocupação com serviços sanitários, níveis de saúde e variáveis ambientais, e inserção política e social relacionada à Saúde Pública, nos chama novamente atenção: mais que um governo pensar um sistema ou projeto específico para a dengue e seu combate no curto prazo (ou qualquer outra doença), por que não implantar uma visão integradora, em que as diversas secretarias criam e acessam dados, possuem dispositivos de planejamento e gestão com protagonismo da sociedade, e em que o Prefeito e seus secretários, por exemplo, podem acompanhar painéis de análise e decisão, trazendo seus sistemas especialistas, ERPs, imagens e mapas não como o produto final, mas como um meio para o entendimento do território e a tomada de decisão e sua consequente intervenção? A decisão para o fim do surto de falta de informações, transparência e decisões é nossa.
(*) Abimael Cereda Junior é geógrafo, especialista em Geoprocessamento e mestre e doutor em Engenharia Urbana, tem como área de pesquisa e atuação o uso de Inteligência Geográfica na Educação, bem como o desenvolvimento e aplicação de métodos e técnicas para análise espacial de dados geográficos.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.