Quando o consumo consome o consumidor
Desde seu surgimento pelas mãos de John Keynes, a macroeconomia tem como objetivo central o crescimento econômico à espera dos sufocantes padrões de consumo. De forma equivocada, muitos ainda acreditam que a abundância material “produz” bem-estar e permite melhorar substancialmente a vida das pessoas, cabendo à atividade econômica ser a protagonista principal desse filme cujo enredo é conhecido: manda quem pode (as forças de mercado) e obedece quem tem juízo (o bolso dos consumidores).
No afã em se produzir a qualquer preço para o atendimento das propagadas necessidades humanas - cada vez mais ilimitadas - a política econômica faz o jogo do mercado e, assim, contribui para transformar artificialmente desejos em necessidades. Para isso, põe a roda da economia para girar com mais força visando o alcance de taxas mais elevadas em termos de produção de bens e serviços; afinal, apoiada por ampla propaganda televisiva, o consumo precisa acontecer para o regozijo da classe produtora.
Mas, como nem tudo que reluz é ouro, nesse meandro produção-consumo não há como refutar uma assertiva: para crescer economicamente (produzir mais) é necessário usar o meio ambiente (fatores naturais) e, em decorrência desse “uso” crescer significa, grosso modo, “destruir”.
Assim, essa premissa pode ser reescrita de outra forma: Consome-se, logo, destrói-se. Produz-se mais, logo, agride-se mais.
Pois bem. Numa sociedade centrada no uso e na força do dinheiro como mecanismo potencializador de qualquer consumo temos a premissa de que “o consumo consome o consumidor”, como diz profeticamente Frei Betto em “A Mosca Azul”.
Diante disso, uma crucial e instigadora pergunta se apresenta como pertinente: como produzir mais para satisfazer desejos e necessidades de consumo se há visivelmente limites e pré-condições impostas pela natureza que impossibilitam esse atendimento em escala crescente?
Como existe o desejo em prontamente atender as necessidades mercadológicas impostas pelo apelo consumista, que por sinal são cada vez mais vorazes, primeiramente, em respeito ao bom senso, deve-se ter em conta aquilo que Clóvis Cavalcanti, especialista em economia ambiental, chama a atenção com bastante veemência: “mais economia implica menos ambiente”.
Isto posto, se é verossímil o fato de que o consumo consome o consumidor, a macroeconomia do consumo consome a natureza e, por esse “consumismo” desenfreado de recursos naturais (limitados, finitos) por parte da atividade econômico-produtiva, em breve, sem exageros retóricos, não haverá mais natureza, não haverá mais economia, mais mercado, produtos, consumidor, vida.
Em nome do “crescimento econômico” a destruição ambiental tem se apresentado com mais veemência nos últimos tempos, ainda que muitos insistam em fechar os olhos para tal questão. O certo é que mais produção material – com a atual matriz energética largamente usada – hoje em dia se traduz como sinônimo de mais emissões de gases de efeito estufa. É imprescindível conter o total dessas emissões, caso contrário, elevando-se a temperatura média do planeta teremos mais enchentes, derretimento de geleiras, mais secas.
Na esteira dessa análise, a economia tradicional beira a cegueira e incorre no crasso e estúpido erro ao confundir e não diferenciar crescimento (quantitativo) de desenvolvimento (qualitativo). De um lado, têm-se a receita tradicional da macroeconomia keynesiana: buscar o crescimento econômico para atenuar os desequilíbrios em relação à taxa de emprego e renda. Do outro, têm-se a questão ecológica que ressalta a não existência de recursos naturais em quantidades disponíveis para a ocorrência desse tal crescimento. O que não se coloca claramente é que crescimento econômico, como diz Ricardo Abramovay em “Muito Além da Economia Verde”, não é uma fórmula universal para se chegar ao bem-estar. Não se nega a importância do crescimento da economia; o que não se pode é fazer dele uma “finalidade”, pois o mesmo é apenas um “meio” para que a vida econômica prospere.
Desse embate teórico, algo tem de ficar bem esclarecido: uma maior produção econômica irá derrubar mais florestas, irá agredir o solo, usar mais água, o ar, a energia, teremos mais aumentos de emissões globais de gases de efeito estufa e teremos, sim, a vida colocada em risco pelo desequilíbrio climático decorrente disso tudo. Continuando com a falta de lucidez por parte da economia tradicional, a insistência em crescer economicamente além dos limites significa ainda aumentar o intercâmbio global de produtos, base essa do atual e avassalador modelo de globalização que recomenda, na ponta final, que a “receita para o sucesso” é ter sempre a geladeira repleta de produtos, de preferência importados. Ora, é simplesmente insano fazer com que um ketchup, por exemplo, vindo dos Estados Unidos “viaje”, às vezes, mais de 10 mil quilômetros para chegar ao mercado brasileiro quando poderia ser produzido domesticamente e “viajar” menos de 1.000 km para chegar às mesas dos brasileiros.
No entanto, para esse modelo de globalização que corre às soltas atestando que o produto importado é a característica mais visível da modernidade, pouca relevância tem o gasto energético intenso envolvido nessa “viagem” de fora para cá do ketchup. Pouco importa se isso é altamente agressivo sobre o meio ambiente e potencialmente gerador de CO2.
Nessa mesma linha de raciocínio, vejamos outro exemplo de como o consumo consome o consumidor e junto a isso a economia consome a natureza pondo a estabilidade climática à beira do precipício: a fruta nectarina produzida em Badajoz, na Espanha, “viaja” quase 400 quilômetros de caminhão queimando combustível até chegar a Portugal, no Porto de Lisboa. De lá vem ao Brasil, chegando ao Porto de Santos vinte dias depois. Alguém consegue imaginar o quanto foi gasto em termos energéticos nesse processo? Isso é inadmissível numa sociedade que já consome em energia e recursos o equivalente a um planeta e 1/3.
Ora, acatar esse modelo de consumo desenfreado (que não passa de um parâmetro falso de bem-estar) “patrocinado” pela macroeconomia da destruição da base natural e “propagandeado” por uma estrutura midiática que movimenta bilhões de dólares e se legitima por gordos lucros é continuar jogando terra sobre a capacidade de se obter desenvolvimento sustentável, pois isso está longe de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Ao contrário: isso apenas reforça a ideia mercadológica (e sabemos que os mercados nunca promoveram bem-estar) e potencializa o triste fato do consumo consumir o consumidor possibilitando a chegada mais rápida da era do caos em termos de qualidade de vida relacionada aos serviços ecossistêmicos.
(*) Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Mestre pela USP com passagem pela Universidade de Havana (Cuba)