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Artes

O coração de Manoel de Barros parou, depois de meses sem vontade de viver

Ângela Kempfer | 13/11/2014 09:12
Manoel em casa, ainda em tempos de vitalidade. (Foto de Marcelo Buainain)
Manoel em casa, ainda em tempos de vitalidade. (Foto de Marcelo Buainain)

Não existe a morte para alguém como Manoel de Barros. Não cabe bem, até por sinal de respeito. O poeta nunca gostou que colocassem data na existência. Então, o dia é de mais uma daquelas inutilezas que a vida inventa e que ele por tantas vezes substantivou.

O coração parou por volta das 8h desta quinta-feira, no Proncor, depois de 6 meses em estado de ruína, como ele mesmo definia os efeitos dos 97 anos de idade, quase 98, que seriam comemorados no dia 19 de dezembro. O velório será no Parque das Primaveras, mas ainda não há horário definido.

"Nesses últimos dias, não reconhecia mais ninguém", diz o irmão Abílio Leite de Barros, de 85 anos. Mas a debilidade veio de forma lenta, lembra ele. "Não foi doença, foi a velhice que se agravou nos últimos 6 meses. Acabou com a falência múltipla de órgãos", detalha.

No dia 24 de outubro, Manoel foi internado para cirurgia de desobstrução intestinal. Depois, permaneceu na UTI, já sem reconhecer os parentes.

Para a família, é uma despedida preparada desde que o próprio Manoel manifestou a vontade de morrer. "Ele já não era mais capaz de ler e escrever e me disse que depois disso não valia mais a pena viver", conta Abílio.

Os últimos meses foram em uma cama ou na cadeira de rodas, em casa, se alimentando por sonda, auxiliado por 4 enfermeiros, sem lápis ou leitura, sem falar ou andar. Ironicamente, por fim ficou como vegetal.

Manoel sofreu pelas doenças do corpo e da alma, desbotada pela perda dos dois filhos homens. Pedro morreu em 2013. Antes, João Wenceslau de Barros partiu, em decorrência de um acidente aéreo em 2007. Nunca mais o poeta teve muitas vontades.

"Manoel não termina nunca. A sua vida tornou-se a Vida, transferiu-se para a palavra encantada que ele criou, para esse 'errar bonito' que os seus versos sugerem", resume de maneira simples o moçambicano Mia Couto, ao se despedir do poeta.

O escritor se dedica aos contos, é considerado um dos maiores da língua portuguesa e tem, dentre tantos reconhecimentos, o Prêmio Camões de Literatura. O que ele escreve, por muitas vezes é comparado à simplicidade de Manoel. A relação com os últimos dias do poeta aparece em frases curtas, impressas na literatura de Mia. "Dói-me a vida, doutor", diz trecho do livro "O menino que escrevia versos".

Foto de Marcelo Buainain, um vizinho que hoje fotografa o mundo.
Foto de Marcelo Buainain, um vizinho que hoje fotografa o mundo.

Apesar de toda a tristeza diante da notícia (sem a graça das invencionices), é bom lembrar que Manoel sabia que o tempo só anda de ida e que, esperto, amarrou o dito cujo no poste para jamais ser esquecido.

Outra sorte é que, antes de partir, nos mostrou o que está sob a pedra. Despertou emoções sobre o bruto. Levantou o que todo mundo chuta para chamar atenção ao sentimento e sugerir paciência de lesma ao olhar apressado. Vegetalizou as pessoas, com simplicidade profunda, como os amigos costumam definir.

Número 1 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Manoel nasceu em Cuiabá (MT), no Beco da Marinha, na beira do rio, mas veio criança para estas bandas e é nosso sul-mato-grossense de fato, morador ilustre da Rua Piratininga, no Jardim dos Estados. "Vivi nos brejos, lugares úmidos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas palavras que aparecem em mim", escreveu sobre o Pantanal.

Ali, tirou o homem do centro das atenções para falar de sapos, formigas, cobras e gotas d'água. "Poderoso não é quem descobre ouro, mas quem descobre as insignificâncias". Falando assim, seguiu uma vida toda, dando lições de humildade. Admirava Charlie Chaplin, por exemplo, por ele ter “monumentado" o vagabundo.

Conversava, pessoalmente ou por telefone, com quem o chamasse para uma prosa. Uma rotina que terminou há cerca de 1 ano, quando o contato ficou restrito à família e aos enfermeiros, por conta do estado de saúde de Manoel que o trancava em casa. Nem sequer um autógrafo mais conseguia desenhar.

A amiga Glorinha Sá Rosa há muito não via Manoel, mas a morte trouxe lembranças de um sujeito surpreendente. “Ele era muito tímido. Chegou a vomitar certa vez, antes de uma palestra em Cuiabá, e desistiu de falar naquele dia”.

Outra passagem é cheia de significados sobre o ser Manoel e envolve um ídolo do poeta. “Ele conseguiu marcar uma conversa com o Manuel Bandeira, poeta que ele amava. Na data combinada, foi até o endereço, apertou a campainha, mas diz que ouviu os passos do Manuel Bandeira rumo à porta, ficou com tanto medo que saiu correndo. Por isso, os dois nunca se encontraram”, conta Glorinha.

Arrumou vários empregos, inclusive, de corretor de imóveis, mas achava chato. Permaneceu por 10 anos no Pantanal à toa e ali começou a armazenar poesia na memória. Mas as obras que o levaram ao reconhecimento só vieram mesmo depois dos 60 anos, já com morada em Campo Grande.

Preferia ser poeta a ser jornalista ou advogado. Porque “quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”. E, afinal, “as invenções servem pra aumentar o mundo.”

Era vaidoso, adorava os elogios, principalmente, os das mulheres. Brincava, com bom-humor sincero, sobre a desilusão de só ficar famoso depois de velho, quando Millôr Fernandes escreveu sobre um poeta “de verdade” que o Brasil desconhecia. Logo em seguida, a revista “El Paseante” publicou na Espanha a primeira matéria destacando a poesia dele e o que era natural diante de tamanha originalidade aconteceu, o sucesso.

No trajeto, Manoel teve como um dos maiores trunfos a esposa e conselheira Stella, 5 anos mais nova. Uma senhorinha que ainda anda de Fusca e chegou a brigar certa vez com o marido por conta de uma poesia que julgou desrespeitosa por falar do sexo de Nossa Senhora Aparecida.

Os dois se conheceram no Rio de Janeiro, quando o corretor Manoel de Barros tentava vender uma apartamento para Stella. "O casamento me salvou. Há muito não me interessava por nenhum homem", dizia a esposa.

Virou o autor que mais vendeu poesias no País. Ganhou fãs apaixonados, que ao publicar de uma reportagem sobre o velho Maneu respondiam à repórter com dezenas de comentários e pedidos para encontros e autógrafos da nossa mais querida celebridade. "Isso satisfaz mais do que critico, mestrado ou doutorado", comemorava.

Quando ficou “famoso” passou a despertar na imprensa especializada o interesse por entrevistas e então criou, bem sem querer, a aversão à máquina, a tudo que não dialoga, como um gravador ou um microfone. Nunca trocou a máquina de escrever pelo computador, e correspondência, na visão dele, só vingava como carta, entregue pelo carteiro.

O jornalista Bosco Martins há muito começou a se despedir do amigo. Era ele o responsável por alguns “boletins médicos” relativos ao poeta. Com o passar dos dias e a fragilidade cada vez mais evidente, passou a dar conselhos aos fãs: “devemos nos acostumar ao ser letral”.

E nesse aspecto, muito está por vir. Manoel não deixou ninguém órfão. A obra dele agora será editada pela Alfaguara, que planeja homenagens ao poeta em 2015 e, de tabela, um alento aos fãs.

Antes de partir, teve a oportunidade de deixar como despedida o orgulho de ser lido, amado e lembrado graças à poesia. "O ser biológico é sujeito à variação do tempo, o poeta não", ensinou Manoel.

Obrigada Manoel.

"Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos..."

 

 

 

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