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Comportamento

Abandonado ainda com cordão umbilical, sambista quer fim de mistério de 46 anos

Paula Maciulevicius | 09/03/2016 06:23
Carlos chegou às irmãs (Elizabeth e Heloísa) e aos pais, 46 anos atrás, deixado na porta de casa. (Foto: Marcos Ermínio)
Carlos chegou às irmãs (Elizabeth e Heloísa) e aos pais, 46 anos atrás, deixado na porta de casa. (Foto: Marcos Ermínio)

Na noite do dia 6 de junho de 1969, a luz da sala encontrou no corredor o rosto de um recém nascido ainda embrulhado em trapos e com o cordão umbilical. Por volta das 8h da noite, quando a irmã mais velha voltava das aulas de francês, a "trouxinha" no batente de casa foi iluminada pelo abrir da porta. Há 46 anos essa cena não sai da cabeça da família Salamene. Mistério que eles buscam resolver num final feliz. Foi assim que Carlinhos, o caçula, sambista e auxiliar contábil chegou aos pais e às três irmãs.

A casa na 13 de Maio, onde antigamente era o número 1.851, tinha um corredor e se entrava pela garagem. A porta da frente ficava na lateral e por costume, Heloísa, a filha mais velha, rodeava para entrar pelos fundos. A exceção foi naquela noite, depois de ver "aquela coisinha estranha".

"Eu bati na porta da frente e a minha mãe abriu. Bateu a luz e a gente viu que era uma criança. Aí imagina? Minha mãe assustou tanto, saiu gritando uma vizinha nossa. Sentei e peguei ele no colo. Todo mundo ficou encantado", conta hoje a professora Heloísa Helena Calzolaio, de 69 anos.

"Eu imagino que ela não seria daqui de Campo Grande e pelo fato de ser muito nova na época e ter tido essa negação do pai dela, ela agiu dessa maneira. Mas não tenho rancor", diz Carlos.
"Eu imagino que ela não seria daqui de Campo Grande e pelo fato de ser muito nova na época e ter tido essa negação do pai dela, ela agiu dessa maneira. Mas não tenho rancor", diz Carlos.

O pai, seu Aziz Salamene, estava numa reunião fora. Quando a notícia chegou, não só ele como todos que estavam juntos correram para a casa.

Seu Aziz levou mamadeira, comprou fraldas e leite e na manhã seguinte foi ao cartório registrar como filho Carlos Miguel Salamene, nascido no dia 6 de junho, na porta da casa da família.

"Aí começou o drama da história, porque a gente nunca devia ter feito isso". Heloísa é enfática em dizer que a família errou em não procurar a polícia e abrir uma investigação. Mas a época também não era tão favorável à essa prática e pelo outro lado, dona Alice, a mãe, havia perdido um filho três anos antes.

"Ela estava bastante sofrida, debilitada", justifica Heloísa. Marcelo, o único menino morreu de leucemia aos 10 anos. Carlos surgiu como "substituto" e teve o posto assumido assim que os olhos da mãe encontraram a "trouxinha".

"A gente não podia tocar no assunto. Ela nos proibiu, dizia: 'ele é meu filho' e achava que o Carlinhos não ia descobrir nunca", conta Heloísa.

Entre os 8 e 9 meses de vida.
Entre os 8 e 9 meses de vida.
Carlos Miguel com 1 aninho.
Carlos Miguel com 1 aninho.
Aos 6 anos, na primeira formatura da escola.
Aos 6 anos, na primeira formatura da escola.

O cordão umbilical do bebê veio a cair oito dias depois. E a história começou a ter pistas somente cinco anos atrás, depois que Carlos, junto da irmã foi atrás das versões e boatos que cercaram seu nascimento.

"Eu acabei descobrindo muitos anos depois, mas desde novo eu me sentia um peixe fora d'água, um estranho no ninho, apesar de todo carinho e da forma como eu fui criado, eu sentia que tinha alguma coisa errada", conta Carlos. Uma das coisas que passavam pela cabeça dele, ainda menino, era como a mãe conseguiu, aos 40 anos, engravidar na década de 60.

Com o tempo, as conversas entre vizinhos chegaram aos ouvidos do garoto, que interpelou a mãe por diversas vezes, mas ouvia de volta a mesma resposta: era filho dela sim e como prova, Alice ameaçava levar o menino até o médico obstetra que fez o parto dos irmãos.

Heloísa, a irmã mais velha que encontrou a "trouxinha" e quer ver final da história.
Heloísa, a irmã mais velha que encontrou a "trouxinha" e quer ver final da história.

Entre 24 e 25 anos, o assunto veio à tona e ele colocou as irmãs contra a parede. Teve a confirmação da suspeita: era adotado.

"Eu arrastei essa situação a vida inteira, até 2010, porque havia uma senhora na frente de casa", descreve Carlinhos. A senhora era a vizinha a quem Alice gritou quando achou o menino. De nome "Nena", ela havia se mudado para o Rio de Janeiro, mas era a única ponte entre o achado e o nascimento.

Acompanhado da irmã Heloísa, Carlinhos foi até ela procurando por respostas. "A única coisa, pelo que eu sei, que sua mãe era uma mulher de fazenda. Filha de um fazendeiro e como ele não quis o neto, ela passou uma época numa casa para terminar a gestação". "Aí eu nasci", repete ao Lado B as únicas palavras que ouviu acerca da mãe biológica.

A vizinha Nena foi quem deixou o bebê na porta da família Salamene naquela noite. Confessou que ficou cuidando até a chegada da irmã mais velha. O parto, segundo ela, foi feito por Noêmia Abdo, parteira da época, que repassava crianças que seriam abandonadas para adoção. As duas eram amigas e Nena até chegou a ajudar em partos.

"Mas ela não teve ou não quis dar nenhuma pista, nem de qual região essa pessoa era", lamenta Carlinhos.

As pessoas mais ligadas ao mistério ou já morreram ou passaram dos 80 anos. Não saber a origem trouxe a Carlos algumas consequências que ele enumera como começar as coisas e nunca terminar, como exemplo a faculdade e até não investir a fundo na carreira musical.

"Eu tenho esse sentimento, não de abandono, mas... Eu não tenho ninguém ligado a mim. De DNA meu, só da minha filha e você saber que não tem ninguém é uma coisa de louco", tenta descrever. De uns tempos para cá, Carlos afirma ter já passado por cima de alguns traumas e assimilado. Na imaginação e no coração procura justificativas para o ato da mãe biológica. "Eu imagino que ela não seria daqui de Campo Grande e pelo fato de ser muito nova na época e ter tido essa negação do pai dela, ela agiu dessa maneira. Mas não tenho rancor", deixa claro.

Para a família, a vizinha contou na visita de Carlos ao Rio de Janeiro, que fez o que fez para ajudar Alice, a mãe. "Ela fala que é porque minha mãe tinha perdido um filho e ela queria dar outro no lugar, diz que gostava muito da minha mãe", conta Heloísa. De fato, Carlinhos foi um alento à ela. "Ela se dedicou muito a ele, ela foi a causadora da gente não ir atrás", explica a irmã.

A história segue uma linha tênue entre o belo e o triste, onde no fim, tudo que Carlos busca é o que tem direito: de saber, sem cobrança alguma.

"É uma história realmente de novela, que não teve um final ainda e sinceramente, acho que pode não ter. A única questão que sobra disso é que de repente eu poderia ter irmãos e irmãs, alguém parecido comigo".

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