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Comportamento

Além de Marçal, outras lideranças marcam memória de juventude indígena

Nomes como Damiana Cavanha, Atanásio Teixeira e Enir Terena são inspiração para jovens indígenas de MS

Por Mylena Fraiha | 25/11/2023 07:52
Mural com os líderes indígenas Marçal de Souza, Enir Terena e Calixto Francelino, no Memorial da Cultura Indígena (Foto: Juliano Almeida)
Mural com os líderes indígenas Marçal de Souza, Enir Terena e Calixto Francelino, no Memorial da Cultura Indígena (Foto: Juliano Almeida)

Há 40 anos, o líder guarani nhandeva Marçal de Souza foi assassinado com cinco tiros em sua própria casa, na aldeia Campestre, região de Antônio João, a 319 km da Capital. Tupã'Y, nome pelo qual foi batizado na língua guarani, se tornou um símbolo de resistência para os povos indígenas de Mato Grosso do Sul.

Assim como Marçal, várias lideranças tombaram sem ver suas terras demarcadas, como é o caso do kaiowá Marcos Veron, que foi assassinado em janeiro de 2003, com 72 anos de idade.

O líder kaiowá passou a vida tentando recuperar a terra, que teve boa parte da floresta desmatada, na área chamada de Taquara, em Juti, a 320 km da Capital. Os assassinos de Veron não enfrentaram acusações formais pelo crime, mas foram identificados como responsáveis por outros delitos relacionados ao ataque, durante audiência judicial realizada em 2011.

Damiana Cavanha faz artesanato em Dourados (Foto: Divulgação/Funai)  
Damiana Cavanha faz artesanato em Dourados (Foto: Divulgação/Funai)

Por outro lado, algumas lideranças foram vencidas por doenças e pelo avanço da idade, não conseguindo retornar aos territórios que, até hoje, não são demarcados. Uma delas foi Damiana Cavanha, líder indígena Guarani-Kaiowá, que dedicou toda sua vida à luta pelos direitos de seu povo. Aos 84 anos, ela faleceu no dia 7 de setembro de 2023, sem ver seu território demarcado.

Damiana, que ocupava o território reivindicado na BR-463, pertencente à fazenda Serrana, foi definida como um símbolo de resistência. Mesmo após inúmeros despejos, ela nunca desistiu de sonhar com seu tekohá, a "terra de onde se é", em guarani. "Eu não vou abaixar meu cabeça. Vamos à luta. Vamos levar para frente a luta", disse ao Lado B, em 2016.

Atanásio Teixeira durante reza na Aldeia Limão Verde (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
Atanásio Teixeira durante reza na Aldeia Limão Verde (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Ainda neste ano, no dia 18 de abril de 2023, encerrou-se a jornada do líder espiritual e rezador (ñanderu) dos povos Guarani-Kaiowá, Atanásio Teixeira, que partiu aos 101 anos de idade na Aldeia Limão Verde, em Amambai. Carinhosamente, Atanásio era conhecido como ñamoi (avô) e Ñanderu (nosso pai).

Conforme noticiado anteriormente, após seu falecimento, o Cimi Regional (Conselho Indigenista Missionário de Mato Grosso do Sul) expressou seu pesar, reconhecendo Atanásio como um verdadeiro guia espiritual.

"Atanásio enfrentou todas as batalhas com coragem. Guiando e dialogando com os encantados, ele foi um pilar inabalável para seu povo e seus territórios. Quantas gerações caminham hoje, protegidas pela bênção sagrada dessas mãos tão quentes e mágicas?", lamentou o Cimi Regional.

O movimento Kuñangue Aty Guasu (Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul) também prestou homenagens a Atanásio, destacando seu papel fundamental como um dos criadores da Aty Guasu, a grande assembleia indígena. "Descanse em paz, Ñamoī Atana", expressou o movimento em nota.

Para além de sua partida, o legado de Atanásio Teixeira é preservado nos ensinamentos que deixou para o povo guarani-kaiowá. Essa busca por conforto encontra eco nos relatos contidos no livro "Cantos dos Animais Primordiais", lançado em 2022. O livro não apenas preserva os ensinamentos, mas também compartilha a essência do amor por ajudar o povo e a convicção da permanência, mesmo após a morte.

Enir Terena durante discurso (Foto: Arquivo/Gerson Walber)
Enir Terena durante discurso (Foto: Arquivo/Gerson Walber)

Já Enir Bezerra da Silva, conhecida como Enir Terena, marcou a luta indigenista por ser a primeira cacique mulher de Mato Grosso do Sul. Ela também foi fundadora da aldeia urbana Marçal de Souza, em Campo Grande. Em 20 de junho de 2016, Enir faleceu devido a complicações de saúde.

Nascida na Aldeia Limão Verde, em Aquidauana, a 135 km da Capital, a líder terena destacou-se por quebrar protocolos ao lutar pela aldeia e contribuir significativamente para a educação de qualidade na primeira aldeia urbana do Brasil.

Durante muito tempo, Enir também trabalhou na feira indígena do Mercadão Municipal de Campo Grande, onde comercializa produtos vindos das aldeia. Hoje, ela é um símbolo para a comunidade terena de Mato Grosso do Sul.

Memorial da Cultura Indígena, localizado na Aldeia Urbana Marçal de Souza, em Campo Grande (Foto: Juliano Almeida)
Memorial da Cultura Indígena, localizado na Aldeia Urbana Marçal de Souza, em Campo Grande (Foto: Juliano Almeida)

Inspiração - Em Campo Grande, a Aldeia Urbana Marçal de Souza é um tributo vivo ao líder guarani nhandeva. Composta por 135 casas, no bairro Tiradentes, a comunidade é considerada a primeira aldeia urbana construída no Brasil.

Lá, também está o Memorial da Cultura Indígena, que foi estabelecido em 30 de agosto de 1999, como um centro dedicado à valorização e promoção das diferentes etnias presentes em Campo Grande.

Atualmente, Josias Jordão Ramires, de 37 anos,  é quem ocupa a posição de cacique. Ele compartilha seu orgulho em liderar uma comunidade que carrega o nome do grande líder Marçal de Souza. "As falas de luta e resistência dele são muito importantes para nós caciques e para os mais jovens", afirma.

Considerado um dos mais jovens caciques de MS, Josias enfatiza que para liderar é preciso manter um diálogo respeitoso com os anciões, tradições e pessoas mais antigas da comunidade. "Eu me sinto honrado em ser um líder considerado jovem. É uma chance de tentar olhar para frente, com mente aberta, mas sempre respeitando nossos anciões, nossas tradições e os mais antigos. É importante manter esse diálogo".

Josias não esquece suas raízes, mencionando a Aldeia Bananal, sua aldeia de origem, localizada na terra indígena Bananal, no município de Aquidauana. Ele também destaca a constante fonte de inspiração que encontra nos ensinamentos transmitidos por seus ancestrais. "Sempre me inspiro no Marçal, assisto aos vídeos dele, buscando sempre essa identidade, essas forças dos ancestrais, principalmente da minha mãe, do meu pai e do meu avô, que são povos terena e trabalhador”.

Grafite de Marçal de Souza feito em parede do Memorial da Cultura Indígena, em Campo Grande (Foto: Juliano Almeida)
Grafite de Marçal de Souza feito em parede do Memorial da Cultura Indígena, em Campo Grande (Foto: Juliano Almeida)

Marçal está imortalizado na aldeia, tanto pelo nome quanto pelos grafites que estampam as paredes da comunidade. O nome do líder guarani nhandeva também é citado de forma recorrente na família do terena Bryan Dias Soares, 23 anos.

"Meus pais falam sobre ele [Marçal de Souza], tanto pelo nome da aldeia, quanto pela pessoa dele. Sempre foi uma referência para a nossa família. Além disso, meu bisavô, de 90 anos, que mora na Aldeia Argola, em Miranda, e o meu avô falecido, sempre falaram de Marçal com uma referência de liderança indígena”, explica o jovem terena.

Bryan está no último ano do curso de Direito, na UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), e afirma que Marçal de Souza é uma grande inspiração. "Ele travou uma luta muito grande, contra latifundiários e invasores da nossa terra. Ele lutou pela terra dele, mas também por nós, todos os indígenas", comenta.

Após sua formatura, Bryan diz querer continuar com a luta indigenista. "Nós indígenas não pensamos no estudo como uma coisa só pessoal. Nós pensamos em ajudar as pessoas que estão no território. Eu tenho consciência de quando eu me formar, quero voltar a ajudar a base".

Arte como ferramenta de luta - Com seus cocares e pinturas tradicionais, os rappers do grupo Brô Mc's levam aos palcos as mesma reivindicações de Marçal de Souza. “Marçal usou sua voz para falar sobre o que estava acontecendo com os indígenas do Brasil. O Brô leva o protesto para cima do palco. Leva o grito e a palavra dos nossos anciões para o palco”, explica o artista Kelvin Mbaretê.

Com cocar e colares tradicionais, o rapper CH aguarda apresentação no teatro Glauce Rocha (Foto: Juliano Almeida)
Com cocar e colares tradicionais, o rapper CH aguarda apresentação no teatro Glauce Rocha (Foto: Juliano Almeida)

O grupo é composto por Kelvin Mbaretê, Bruno Veron, Clemersom Batista e Charlie Peixoto, todos membros da etnia Guarani Kaiowá e provenientes de Jaguapiru e Boróró, em Dourados.

A peculiaridade do Brô Mc’s reside na mistura de português e guarani em suas letras, proporcionando aos admiradores uma imersão nas representações da cultura, língua e realidade indígena do Brasil. O grupo já teve apresentações em eventos de renome, como o Festival América Latina, e dividiu o palco com Xamã no Rock in Rio 2022.

Kelvin e Bruno comentam influência de Marçal de Souza em suas músicas (Foto: Juliano Almeida)
Kelvin e Bruno comentam influência de Marçal de Souza em suas músicas (Foto: Juliano Almeida)

Em uma entrevista concedida ao Campo Grande News, os membros do grupo destacaram a influência marcante de Marçal de Souza em sua trajetória artística. Para Kelvin, o líder assassinado há 40 anos é uma inspiração de luta. “A memória de Marçal de Souza, para mim, é uma referência de luta. Ele lutou bastante para mostrar a realidade do povo indígena”.

Ao recordar de um vídeo em que Marçal discursava para o Papa João Paulo II, Kelvin ressalta que o líder guarani nhandeva foi um dos pioneiros na luta indigenista. “Ele abriu um caminho para os 'artivistas' indígenas. Hoje, o Brô também faz isso. Tentamos passar essa realidade do nosso povo, por meio da música. É o mesmo discurso que a gente faz só que em forma de letra, em forma de música, em forma de poesia e é isso”.

O rapper Bruno Veron também destaca que além de Marçal, outros ancestrais são homenageados em suas apresentações. “Nós levamos o nome de diversas lideranças que nos deixaram, não apenas o de Marçal. O Brô também aborda essa questão, levando a palavra e a mensagem por meio da poesia”.

Conscientes de sua capacidade de influenciar a juventude, os rappers do Brô MC’s apontam que seu ativismo é feito por meio da palavra e da arte. “A palavra é como uma flecha, que a gente aponta e atira na cabeça, para despertar a consciência sobre as questões enfrentadas pelo povo guarani-kaiowá”, reforça Kelvin.

Educação como ferramenta de luta - Na busca pela preservação da cultura e na luta por direitos e dignidade, a educação tem se destacado como uma poderosa ferramenta de resistência para a comunidade indígena.

De acordo com a professora aposentada Edina de Souza, a educação sempre foi defendida e incentivada pelo seu pai, Marçal de Souza. “Dentro de casa, sempre respeitamos a cultura guarani. E meu pai sempre nos incentivava a estudar. Ele acreditava que o que garantiria a sobrevivência dos indígenas era o estudo”.

Um dos primeiros estudantes a se formar pelo vestibular indígena da Unicamp, Luiz Felipe Medina segura bandeira da instituição durante colação de grau (Foto: Arquivo pessoal)
Um dos primeiros estudantes a se formar pelo vestibular indígena da Unicamp, Luiz Felipe Medina segura bandeira da instituição durante colação de grau (Foto: Arquivo pessoal)

Do mesmo modo, o estudante Luiz Felipe Medina, de 26 anos, formado em Administração Pública pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), ressalta que ocupar os espaços acadêmicos é uma forma de garantir o futuro dos povos originários. "Os mais velhos sempre tiveram as crianças e a juventude como fonte de vida nas aldeias. Isso nos inspira a continuar lutando pelos nossos direitos e a construir um futuro mais pleno".

Luiz Felipe foi um dos dois primeiros estudantes indígenas formado pelo vestibular indígena da Unicamp. “Isso me trouxe muita responsabilidade em todos os 4 anos de curso. Pois dentro da universidade eu trabalhei incansavelmente para que a política da Unicamp, que está apenas começando, dê certo”.

Para o estudante guarani, o legado de Marçal e de outros anciões é uma referência de luta e persistência. “Hoje estamos aqui e somos guiados pelos nossos mais velhos que não estão mais nessa vida. Por exemplo, a voz de Marçal, que para mim ecoa até hoje no cosmos e de alguma maneira nos faz levantar e nos fortalece para continuar caminhando”.

Luiz Felipe Medina durante reunião com pesquisadores, na Noruega (Foto: Arquivo pessoal)
Luiz Felipe Medina durante reunião com pesquisadores, na Noruega (Foto: Arquivo pessoal)

Atualmente, ele é pesquisador visitante convidado na Universidade de Tromsø, na Noruega, representando o IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp. “Hoje, ocupamos todos os espaços burocráticos do estado e da sociedade brasileira e nunca deixaremos de ser indígenas. Pelo contrário, estamos em constante afirmação de nossas identidades nesses lugares. Trabalhando para que as burocracias sejam cada vez menos colonial e dominadoras”, explica Luiz Felipe.

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