A vida do pescador que virou pedreiro e hoje é catador de materiais recicláveis
Não era possível que aquele senhor com aparência superior a idade que me informara pudesse apenas confirmar que aquele terreno, um matagal na Morada do Sossego, em Campo Grande, estava mesmo abandonado. A história não poderia terminar ali. Resolvi, então, mudar o foco.
Deixei de lado o que fazia e, por alguns minutos, conversamos sobre a vida, conquistas, sobre sonhos. Falamos do passado, do presente e do futuro, ali mesmo, na rua Chapada dos Guimarães, a penúltima do bairro.
Em uma época onde propostas são “descarregadas” pelo rádio e televisão, muitas distantes da realidade, histórias como essa confirmam que nem tudo está “a mil maravilhas”, mas ainda é possível encontrar "gente do bem".
Em meio a um amontoado de entulhos espalhados em frente à casa onde mora e escorado no carrinho que utiliza para trabalhar, Paulo Andrade Silva aceita conversar, mas avisa que é “sistemático”.
Por fim, revela a idade e a profissão: Tem 54 anos e é catador de materiais recicláveis. Mora com a esposa e o filho mais velho, de 25 anos, em uma casa de duas peças, no mesmo terreno que comprou em 1978, quando chegou a Campo Grande.
Passaram-se 34 anos e muita coisa mudou na vida do homem que nasceu em Cuiabá. Em Mato Grosso, “seo” Paulo começou a trabalhar como pescador, mas acabou trocando os rios pelos canteiros de obra. Virou pedreiro, a “profissão original”, que aprendeu desde cedo, por volta dos 8 anos.
Mais tarde, mudou-se para Coxim, onde serviu o exército. Depois, resolveu tocar a vida em Aquidauana. Lá, Paulo casou, teve filhos e, novamente, mudou de ofício. Na cidade que fica a 135 quilômetros de Campo Grande, o ex-pescador virou comerciante e abriu um espaço de "secos e molhados", mas a estratégia não deu certo. Foi quando, em 1978, resolveu mudar com a família para a Capital.
Aqui, voltou a ser pedreiro. Três meses depois, um acidente mudou os planos. Durante a obra de construção do Terminal Nova Bahia, Paulo caiu de um andaime de aproximadamente três metros, fraturou o joelho esquerdo e apresentou desvio do menisco medial.
Só não teve a perna amputada porque não aceitou a decisão médica, mas hoje, como a estrutura calcificou fora da cavidade, ele caminha com dificuldade e sempre sente dores. Às vezes passa o dia inteiro na cama.
O problema, mais uma vez, o forçou a tomar uma nova decisão. Sem trabalho e sendo recusado de porta em porta, Paulo resolveu sair às ruas em busca do sustento. Não viu alternativa senão virar catador de materiais recicláveis.
Rotina - A maneira como Paulo honra o que faz chama a atenção. É o retrato do Brasil trabalhador, onde a riqueza concentra-se nas mãos de poucos e a democracia continua a ser questionável. Mas também é a prova de que caráter não se vende e que honestidade é uma qualidade em extinção.
Ele sai cedo de casa, antes mesmo do sol nascer. Às 3h da madrugada já está na rua, empurrando o carrinho, em busca de papel, papelão, latinha de alumínio ou qualquer material que, no final do mês, possa ser vendido para empresas que recolhem materiais recicláveis.
O lucro mensal é de aproximadamente R$ 300,00, mas o dinheiro sai rápido. Só de energia elétrica, o catador paga R$ 180,00. O resto vai para despesas alimentares e de saúde. “A gente não gosta, mas não pode é roubar”, comenta, se referindo à profissão.
Fora o esforço diário que tem em manter a casa, Paulo revela que sofre preconceito da própria vizinhança que se sente incomodada com a presença do depósito improvisado.
“Mas eu não devo nada para ninguém. Comprei aqui e paguei com o meu dinheiro”, argumenta, ao dizer que prefere trabalhar ao invés de bater de casa em casa como pedinte.
Para finalizar a conversa, pergunto sobre política. O ex-pedreiro mostra que tem opinião formada. Revela que já escolheu os representantes e comenta que não acha certo quem vende o voto. "Aí depois, quando for reclamar não adianta porque ele vai falar: eu comprei seu voto. Eu paguei", disse.
O relato de Paulo Andrade não vai mudar o mundo. É apenas um recorte em uma imensidão de situações semelhantes ou piores, mas é um exemplo que merece destaque em um país onde a corrupção é marca registrada. Gente como seo Paulo não se encontra em qualquer esquina, infelizmente.