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Exército reconstitui a marcha que contabilizou a morte de 2,3 mil homens

Encenação da Retirada da Laguna inaugura marcos históricos e integra sociedade em três cidades de Mato Grosso do Sul

Aliny Mary Dias | 01/09/2013 08:00
Um dos momentos mais emocionantes da Retirada da Laguna é a encenação da explosão da igreja em Nioaque (Foto: Marcos Ermínio)
Um dos momentos mais emocionantes da Retirada da Laguna é a encenação da explosão da igreja em Nioaque (Foto: Marcos Ermínio)

Um dos episódios mais marcantes da Guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e 1870, foi a Retirada da Laguna, marcha que começou com mais de 3 mil homens, mas apenas 700 chegaram vivos ao destino final. O fato histórico para Mato Grosso do Sul durou pouco mais de um mês, mas na última semana uma comitiva organizada pelo Exército Brasileiro refez o trajeto em três dias.

A convite do CMO (Comando Militar do Oeste), a reportagem do Campo Grande News acompanhou todo o percurso e os detalhes dessa aventura podem ser conferidos nesta reportagem.

Além de militares que organizaram a 9ª Marcha da Retirada da Laguna, no grupo de 90 pessoas também havia militares da reserva, acadêmicos do curso de História de universidades de Campo Grande e Dourados, membros de institutos históricos e professores universitários.

Realizada há 9 anos e de forma consecutiva há três, a encenação da retirada em 2013 contou com a inauguração de cinco marcos históricos e participação da sociedade. Alunos de escolas públicas e particulares acompanharam as atividades em Bela Vista, Jardim e Nioaque.

O início da jornada se deu ainda na sede do CMO em Campo Grande, na manhã da quinta-feira (29). Os integrantes participaram de palestras que ambientaram o contexto histórico da Guerra do Paraguai e da Retirada da Laguna.

O primeiro destino da viagem foi Bela Vista, a 324 quilômetros da Capital. Hospedados no Quartel Antônio João do 10º Regimento de Cavalaria Mecanizada, a missão inicial foi refazer a travessia do Rio Apa, ação realizada pelos militares brasileiros em 11 de maio de 1867.

Na época, os guerreiros brasileiros que enfrentavam a força paraguaia tentaram uma investida na tropa adversária entrando na cidade de Laguna, território repleto de militares com armamentos pesados e prontos para o combate. Os cerca de 3 mil soldados foram liderados pelo coronel Carlos de Morais Camisão, que resolveu bater em retirada após reconhecer a supremacia do inimigo paraguaio.

Travessia do rio Apa foi feita por alunos de escolas e integrantes da comitiva guiada pelo Exército (Foto: Marcos Ermínio)
Travessia do rio Apa foi feita por alunos de escolas e integrantes da comitiva guiada pelo Exército (Foto: Marcos Ermínio)

A reconstituição da travessia do rio feita na época pelos militares e mulheres em um intervalo de 24 horas em razão de uma pinguela estreita, dessa vez foi rápida. Em uma ponte estruturada e segura, os integrantes da comitiva e alunos de escolas públicas atravessaram para Bela Vista do Norte, no departamento de Amambay, e puderam reviver, com menos tensão e preocupação, é claro, a uma travessia de quase 2 minutos.

Rotina em todas as atividades da encenação de 2013, um marco histórico para lembrar aqueles que iniciaram a jornada da retirada foi inaugurado por autoridades civis e militares.

Das margens do rio Apa, todos seguiram rumo ao Monumento Internacional de Nhandipá, um marco levantado para relembrar a última grande batalha entre brasileiros e paraguaios. Segundo os registros históricos, após a travessia do rio Apa, o confronto terminou com cerca de 230 militares mortos.

Em homenagem ao campo de batalha do confronto ocorrido em 11 de maio de 1867, o monumento manteve o nome original em guarani que significa “enfim chegamos ao término”. Além de relembrar os mortos, o local também é considerado o marco inicial de Bela Vista.

As atividades sempre guiadas pelos militares contam com planejamento e organização militar. Todo o deslocamento entre um local e outro é feito em ônibus ou vans conduzidas pelos militares. Uma ambulância do Exército e a até um helicóptero ficam à disposição do grupo caso algum incidente aconteça.

A última visitação da comitiva em Bela Vista foi a um momento carregado de emoção. No Cemitério da Água Doce, os dois últimos descendentes de José Francisco Lopes, um dos protagonistas da Retirada da Laguna conhecido como Guia Lopes da Laguna, visitaram o túmulo de Dona Senhorinha Lopes, a viúva do militar.

Emocionada e honrada em homenagear a tataravó, Deolinda Corbelino Melges de 69 anos, acompanhou a comitiva e relembrou das histórias sobre a Retirada da Laguna contadas pelas gerações da família.

“Nós viemos de algum lugar e à medida que crescemos vemos a importância da família e das raízes. Me lembro da minha avó contando sobre a bravura de Guia Lopes e isso me deixa muito emocionada. Espero que todos possam repassar essas histórias para os filhos e netos um dia”, afirma a professora aposentada.

Nhandipá - enfim chegamos ao término(Foto: Marcos Ermínio)
Nhandipá - enfim chegamos ao término(Foto: Marcos Ermínio)
Deolinda é tataraneta de Guia Lopes e reverencia túmulo de viúva do militar (Foto: Marcos Ermínio)
Deolinda é tataraneta de Guia Lopes e reverencia túmulo de viúva do militar (Foto: Marcos Ermínio)

Deixados para trás com cólera - No segundo dia da aventura, já em Jardim, distante 239 quilômetros de Campo Grande, o primeiro compromisso foi o de mais difícil acesso. A bordo de ônibus rurais com tração nas quatro rodas e preparados para enfrentar terrenos difíceis, a comitiva percorreu 20 quilômetros rumo a Fazenda Mimoso.

Todos imaginavam que o sol quente, a poeira e a umidade do ar em níveis desérticos valeriam à pena por conta do que seria visto em breve. Depois de um percurso de aproximadamente 40 minutos, todos puderam entrar na mata e apreciar o exato local onde cerca de 130 militares com cólera tiveram que ser deixados para trás para evitar que toda a missão fosse por água abaixo e o Exército paraguaio exterminasse a tropa, já reduzida pela longa caminhada.

Após a decisão de deixar os irmãos de luta para trás, os comandantes da missão abriram uma vala onde os doentes foram deixados e em uma árvore um cartaz com o dizer “compaixão para com os coléricos” foi afixado. Apesar do pedido de piedade, poucos minutos após seguir viagem os brasileiros puderam ouvir a sequência de tiros que tiraram a vida dos coléricos.

Monumento foi inaugurado no local onde árvore com inscrição foi encontrada (Foto: Marcos Ermínio)
Monumento foi inaugurado no local onde árvore com inscrição foi encontrada (Foto: Marcos Ermínio)

Pouco tempo depois do fato, o dizer “Cambaracê – negro que chora”, foi entalhado em uma árvore e o local foi eternizado como o palco da morte de uma centena de militares.

Proprietário da fazenda que hoje abriga uma parte da história do Estado, Marcelo Monteiro de 52 anos, explica que a descoberta da importância do local na Guerra do Paraguai só ocorreu em 1998.

“Um historiador paulista nos procurou, fez muitas perguntas e visitas na mata. Encontramos essa árvore com a palavra entalhada e foi uma surpresa para todos nós”, explica o pecuarista. Em homenagem ao lugar, dois monumentos foram erguidos, além do marco histórico. Uma parte da árvore original faz parte das relíquias da época das batalhas guardadas pelo Exército.

Para encerrar o dia, a comitiva seguiu para o Monumento Histórico dos Heróis também localizado em uma propriedade rural em Jardim. No lugar, o Governo Imperial ordenou que fosse erguido um monumento em memória do comandante Camisão e de Guia Lopes. A inauguração ocorreu em 1874 e o cemitério simbólico é preservado até hoje.

Cambaracê - o negro que chora - é o local onde os coléricos foram deixados (Foto: Marcos Ermínio)
Cambaracê - o negro que chora - é o local onde os coléricos foram deixados (Foto: Marcos Ermínio)

Explosão da Igreja - O último e mais esperado dia da marcha começou em Nioaque, a 187 quilômetros da Capital. Na cidade, a comitiva foi recebida com festa, a encenação da Laguna faz parte do calendário dos moradores, mas esse foi o primeiro ano que a Prefeitura e o Exército se uniram para criar o Festival da Laguna. Além do evento conhecido como Explosão da Igreja, a cidade recebeu shows e barracas com comidas típicas, cenário de uma grande festa.

A encenação representada em Nioaque, antiga Vila Nioac, tem toques de produções teatrais ao ar livre dignas da Paixão de Cristo. Militares e civis se unem e passam por ensaios e treinamentos durante meses para que tudo saia como o planejado.

Pontualmente às 9 horas, a música ambienta os tempos de carro de bois, trabalhos manuais e vida simples da época de 1860. Tudo parece muito calmo até que índios guaicurus aparecem correndo em desespero e anunciam as cenas de horror que viriam a seguir.

A cavalaria do Exército paraguaio chega a todo vapor na pacata vila, mata a maioria dos moradores e põe fogo nas casas. Cientes de que os militares brasileiros que seguiam a Retirada da Laguna chegariam em breve, a tropa inimiga prepara uma armadilha e deposita quilos de pólvora dentro da Igreja do vilarejo.

Como sobreviventes de uma caminhada que já durava quase um mês, os guerreiros cansados surgem ao longe. Ao chegar na Vila Nioac e avistar o estrago deixado pelo inimigo, os militares ajudam os que resistiram e resolvem passar a noite na igreja.

Já esperado pelos paraguaios, um leve descuido de um militar brasileiro com um isqueiro causou uma explosão de proporções imensas e a igreja foi para os ares. Os militares que dentro da igreja ficaram tiveram o corpo queimado. Após horas de sofrimento e baixa de 15 homens, a tropa seguiu viagem.

Encenação conta com participação de moradores e militares (Foto: Marcos Ermínio)
Encenação conta com participação de moradores e militares (Foto: Marcos Ermínio)

Toda a encenação feita pelos militares e moradores é tão real que emociona todos que acompanham o espetáculo. Para dar mais veracidade à reprodução, um dos militares coloca até carne de boi debaixo das roupas.

“É uma emoção que não tem explicação. Nós colocamos a carne para representar a pele dos militares que foi queimada na explosão. É uma sensação de voltar no tempo e poder recontar a história para todos”, afirma o 2º sargento Micael Sabah, 33 anos, ator por um dia que representou um dos militares feridos.

Porto Canuto e o fim da aventura - Para comemorar o fim dos três dias envolvidos pela história de um episódio marcante da Guerra do Paraguai, o lugar não poderia ser outro. Porto Canuto fica em Anastácio, a 134 quilômetros de Campo Grande, e é o lugar onde chegou ao fim a Retirada da Laguna.

Os 700 homens que sobreviveram aos dias de batalha, doenças fatais, tempestades, travessia de rio e armadilha do inimigo são lembrados e reverenciados por aqueles que escolheram o militarismo como legado.

Monumento construído para lembrar marco final da Retirada da Laguna (Foto: Marcos Ermínio)
Monumento construído para lembrar marco final da Retirada da Laguna (Foto: Marcos Ermínio)

Em uma rocha de arenito aquidauano, uma placa inaugurada em 1991 relembra o feito dos militares brasileiros. O fim do sofrimento dos bravos guerreiros, que impediram que o Paraguai invadisse o então sul do Mato Grosso e impedisse a tardia criação de Mato Grosso do Sul, também põe ao fim a aventura de mais de 90 civis e militares que percorreram centenas de quilômetros pela simples curiosidade de conhecer a história do país e do Estado.

Para o comandante do CMO, general João Francisco Ferreira, os três dias podem ser resumidos em poucas palavras. “Foi fantástico. É extremamente gratificante poder integrar a sociedade aos militares e passar esses dias que nos trazem uma riqueza cultural imensa. Tivemos a oportunidade de conhecer na prática os detalhes da Retirada da Laguna”, completa Ferreira.

Se para os militares os dias foram fantásticos, para os que puderam percorrer locais históricos e ver ao vivo histórias antes escritas em livros ficou o sentimento de resgate do patriotismo e a certeza de que a frase “orgulho de se brasileiro” será dita em alto e bom tom daqui para frente.

(O Campo Grande News viajou a convite do Comando Militar do Oeste)

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