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As águas invisíveis no Censo 2022

Por Leonardo Capeleto de Andrade, Fernando Schuh Rörig e Ricardo Hirata (*) | 28/03/2024 09:00

As águas subterrâneas são a principal fonte de abastecimento de água para 28,3 milhões de brasileiros (14% da população), sendo a principal alternativa para a rede de água. É isso o que revelam os recentes dados divulgados de Características dos domicílios do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

No entanto, estes números representam apenas parte da realidade brasileira: 40% das cidades são totalmente, e 17% parcialmente, abastecidas pelas águas subterrâneas – na chamada “rede geral” do Censo.

Esse recurso é captado por 2,5 milhões de poços tubulares ou “artesianos”, sendo que 88% são irregulares, ou seja, não constam nos cadastros oficiais dos órgãos de controle, invisibilizando a extração de mais de 17,6 bilhões de litros por ano – o que seria o suficiente para abastecer todos os domicílios do Brasil.

Logo, há uma subnotificação do número de usuários das águas subterrâneas, que vão além do uso residencial, sendo a fonte primária para muitos shopping centers, hotéis, lavanderias, aeroportos, além do uso na indústria e na irrigação agrícola, movimentando uma economia de mais de R$ 100 bilhões/ano.

Apesar das ressalvas, e das realidades que podem fugir da percepção do respondente (o desconhecimento da fonte de água em muitas moradias), os dados do Censo demonstram como as águas subterrâneas, apesar de tão “invisíveis”, são tão relevantes para milhões de brasileiros.

Uma das novidades nos questionários do Censo 2022 foi a diferenciação do uso das águas subterrâneas, separadas agora em poços “profundos” e “rasos”. Isso melhorou a identificação da água usada pela população não conectada à rede geral: para 21,6 milhões (11% da população brasileira), as águas subterrâneas foram sua principal fonte de abastecimento.

Destes, a maior parte utilizava os poços profundos (48%), seguido dos rasos (20%) e nascentes (13%). Além disso, outros 5,2 milhões possuíam ligação à rede geral, mas utilizavam (por preferência ou intermitência) um “poço profundo ou artesiano” para seu abastecimento, além de outros 1,5 milhão usando “poço raso, freático ou cacimba” ou “fonte, nascente ou mina”.

Logo, os poços preenchem os grandes abismos de acesso ao abastecimento. Na Região Norte, enquanto pouco mais da metade dos domicílios possuíam e utilizavam a ligação à rede geral de água para seu abastecimento, 38% tinham as águas subterrâneas como fonte principal.

A preferência do Norte pelas águas subterrâneas se confronta com outro resultado do Censo 2022: esta é uma das regiões com o menor índice de tratamento de esgotos – e grande predominância de fossas – o que gera problemas de contaminação dos aquíferos e potenciais águas impróprias ao consumo humano, aumentando o risco de doenças de veiculação hídrica. Nesses domicílios sem rede, onde a origem das águas não é uma opção, as políticas públicas de saneamento são ainda mais urgentes.

Já para os milhões de domicílios onde há rede e as águas subterrâneas são a alternativa, o uso destas “poupa” água para as empresas de saneamento, que precisam fornecer uma menor vazão para o restante da população. Desta forma, mesmo que somente os grandes condomínios ou loteamentos tenham capacidade financeira de perfurar um poço tubular, a água adicional ajuda os outros usuários regulares da rede.

Essa realidade é muito comum em muitas cidades pelo País, como as regiões metropolitanas de Recife e de São Paulo – onde os 14 mil poços profundos adicionam um volume fundamental para superar a crise hídrica entre 2013 e 2017, sem os quais a região teria ido ao colapso.

É inegável a contribuição dos aquíferos para o abastecimento no Brasil, seja no uso particular ou público: municípios abastecidos por águas subterrâneas foram duas vezes mais resilientes contra as últimas crises hídricas. E esse papel tende a crescer no enfrentamento dos impactos das mudanças no clima.

Assim, as águas subterrâneas são fundamentais para superar os problemas de abastecimento de água e o retrato real da sua importância é peça-chave nas políticas de universalização do serviço de água e aumento de resiliência da população brasileira. Embora ainda haja subnotificações, o novo Censo dá direção nessa superação.

(*) Leonardo Capeleto de Andrade, Fernando Schuh Rörig e Ricardo Hirata são pesquisadores do Centro de Pesquisas de Água Subterrânea (Cepas) da USP.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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