A extensão e a pedagogia crítica feminista de bell hooks
No fim de 2021, bell hooks faleceu no Kentucky, seu estado natal nos Estados Unidos. A autora deixa contribuições nos campos da teoria feminista, da raça, das masculinidades, do amor, do pertencimento e também da educação. Neste último, o que denomina pedagogia crítica feminista ou pedagogia engajada pode também servir como paradigma para refletir sobre o potencial da extensão universitária, especialmente aquela dedicada aos temas de gênero e direito das mulheres.
Para elaborar essa reflexão, propõe-se tomar como ponto de partida um grupo de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Assessoria para Mulheres – ou, se preferem, a GRITAM, no feminino – é parte do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária, um dos projetos de extensão mais antigos da UFRGS. Como a GRITAM forneceu uma entrevista ao JU recentemente onde é possível encontrar mais informações sobre as atividades do grupo, o artigo não abordará um relato de experiências. No lugar, dentre as diversas conexões possíveis entre a pedagogia crítica feminista e a assessoria popular a mulheres cis, trans e travestis, oferecem-se alguns pontos para reflexão.
“Esperam [os estudantes], com toda razão, que eu e meus colegas não lhes ofereçamos informações sem tratar também da ligação entre o que eles estão aprendendo e sua experiência global de vida” (bell hooks em Ensinando a Transgredir, publicado pela primeira vez em 1994).
A pedagogia crítica e feminista de bell hooks bebe de fontes conhecidas para os educadores brasileiros, como o pensamento e a práxis freireanos. Ao conhecer a obra do autor, hooks incorporou-lhe sua criticidade, apontando contradições e binarismos de gênero, ao mesmo tempo que se utilizou de seu paradigma pedagógico para questionar as próprias metodologias feministas. Nesse processo, uniu fundamentos na construção de sua própria pedagogia engajada, que inclui elementos anticoloniais, críticos e feministas.
Parte central da pedagogia crítica de bell hooks é a busca pelo conhecimento integral, requerendo conexão entre consciência e prática. Nessa busca, a construção do conhecimento acontece de forma atenta às diversas formas de viver no mundo, reconhecendo a intrínseca ligação entre o que se aprende na sala de aula e o que se encontra na experiência cotidiana.
Como um projeto de extensão universitária baseado no atendimento ao público externo e na prestação contínua de serviços à comunidade, a experiência da GRITAM possibilita a conexão direta entre o aprendizado acadêmico e a experiência de vida prática.
Na confrontação da realidade cotidiana da violência de gênero, os casos provocam as pessoas envolvidas à utilização do conhecimento integral: é quase impossível pensar o conteúdo aprendido em aula de forma desconectada com a urgência da realidade próxima.
Assim, o atendimento feito às mulheres em situação de violência não consiste apenas na aplicação prática das técnicas do direito, da psicologia, da assistência social ou das ciências sociais, mas abrange a oportunidade de mobilização da consciência crítica para a solução dos problemas complexos que as mulheres enfrentam: como lidar com machismo, racismo, transfobia e lgtbfobia dentro de alguns dos serviços públicos que as assessoradas irão acessar? Ou, ainda, em casos de violência extrema, como construir redes de apoio e proteção diante das poucas vagas em abrigos públicos?
Práxis e conhecimento integral relacionam-se também com a forma como o conhecimento é produzido. Nesse ponto, bell hooks questiona as bases da teorização feminista e seus usos para a educação libertadora.
Em muitos dos seus livros de teoria feminista, como Teoria feminista: das margens ao centro e E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo, hooks apontou as limitações das teorias feministas burguesas e brancas para explicar a realidade das mulheres negras e periféricas, assim como as dificuldades do feminismo de constituir-se como movimento político de fato radical. Explicando que o pensamento de Freire lhe serviu mais significativamente para o reconhecimento da opressão e da exploração do que muitas obras feministas hegemônicas, a autora propõe a teorização como um processo que pode acontecer “enquanto trabalhamos para resolver as questões mais prementes da nossa vida cotidiana” (em Ensinando a Transgredir).
Atividades como as realizadas pela GRITAM, na medida em que trabalham com a resolução de problemas cotidianos das mulheres vítimas de violência, também geram oportunidades de reflexão crítica sobre a teoria feminista. Ainda na graduação, as estudantes possuem a oportunidade de pensar o que é aprendido na sala de aula como substrato para agir criticamente na qualidade de vida das pessoas. Além disso, por vezes o conhecimento necessário nos atendimentos é justamente o que não é aprendido em sala de aula, gerando questionamentos sobre o que, embora esteja fora do currículo acadêmico, se mostra fundamental para a prática. Abre-se oportunidade para questionamentos como:
“Onde encontrar um corpo teórico feminista cujo objetivo seja ajudar os indivíduos a integrar o pensamento e a prática feministas em sua vida cotidiana? Que teoria feminista, por exemplo, tem o objetivo de auxiliar os esforços das mulheres que vivem em lares sexistas para produzir uma mudança feminista?” (bell hooks em Ensinando a Transgredir)
Em síntese, a pedagogia crítica feminista de bell hooks oferece reflexões que podem se estender ao potencial da extensão universitária, em especial quando dedicada ao gênero e ao direito das mulheres. Sabe-se que os projetos de extensão, assim como qualquer outro projeto coletivo, são dotados de contradições, possuem problemas de execução e enfrentam limites orçamentários para a sua continuidade dentro da comunidade acadêmica. Apesar disso, trazem para as pessoas que neles se engajam – estudantes, profissionais e assistidas – uma oportunidade de construção crítica. Nas palavras de bell hooks, retratam, em toda sua complexidade, “um esforço coletivo para criar e manter uma comunidade de aprendizado” (em Ensinando a Transgredir).
(*) Amanda Kovalczuk é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS e atua como profissional voluntária na GRITAM.