A geopolítica e a política externa entre Brasil e África
Poucas vezes na história a geopolítica e a política externa do Brasil em relação ao continente africano mudaram tanto quanto no século XXI, seja para o “bem” ou para o “mal”. Para os(as) viajantes que estão embarcando nessa temática pela primeira vez, faz-se necessário pontuar ao que me refiro quando utilizo os termos “geopolítica” e “política externa”. Pesquisadoras(es) como Bertha Becker e Philippe Hugon definem geopolítica como a relação entre a prática do poder e o espaço geográfico (aquele que conhecemos, dos mapas tradicionais que delimitam os Estados nacionais). Em outras palavras, trata-se da utilização da informação geográfica em benefício do Estado. Por outro lado, a política externa, em termos básicos, seria a relação estabelecida entre um Estado nacional e outros de mesma característica, o diálogo e estratégia entre o doméstico e o internacional/externo.
Assim, no que diz respeito à relação geopolítica e à política exterior dos territórios africanos, é possível afirmar que aquele continente teve, historicamente, relações geopolíticas assimétricas/desiguais, principalmente com o continente europeu, o qual criou estereótipos em relação à África. Pensando nisso, Philippe Hugon pontua que ainda existem sete tipos de estereótipos sobre a África e os africanos em termos estatais e cujas bases são, respectivamente: racismo, paternalismo, exotismo, humanismo, relativismo, conscientizado e solidário.
Não cabe descrever aqui cada um desses arquétipos, mas dois deles podem ser úteis para se pensar a relação geopolítica entre Brasil e África: o humanista, que vê os africanos como irmãos, semelhantes, com o qual é preciso cooperar, e o paternalista, que vê a África como um território atrasado na evolução da humanidade.
A perspectiva paternalista trata-se, na prática, de uma visão linear da realidade, resultante de uma abordagem de cima para baixo, na qual a África é vista como espaço estático, sujeito passivo, desqualificada geopoliticamente, periférica, endividada e pobre. Por outro lado, a abordagem de baixo para cima, vinculada ao arquétipo humanista, identifica a importância geopolítica e a capacidade inventiva, inovadora e autônoma da África.
Até o início do século XXI, a Política Externa Brasileira (PEB) para a África estava enraizada numa diplomacia cultural, ou seja, baseada na ideia de familiaridade histórica entre ambos os lados do Atlântico. Mas já no primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil, o discurso culturalista da PEB para o continente africano foi ganhando substância e complementariedade com outros discursos de cunho desenvolvimentista, principalmente do espectro ideológico de esquerda.
Para os adeptos do arquétipo tanto humanista como paternalista, a relação Brasil-África, na primeira década dos anos 2000, foi problemática. Para alguns pesquisadores, investir em África foi um problema governamental, já que muitos países daquele continente eram, em tese, desprovidos de relevância econômica ou política para o Brasil. A partir dessa lógica, o foco brasileiro em África foi um desperdício de energia, tempo e dinheiro, visto que até dívida externa de alguns países africanos o Brasil perdoou. Para parte da vertente do espectro político ideológico de esquerda, a relação Brasil-África nesse período foi um tipo de imperialismo, ou seja, construída de forma assimétrica.
De 2019 até os dias atuais (2022), a PEB para o continente africano tem tido uma grande ruptura, visto o grau de proximidade, sem precedentes, do Brasil ao Estados Unidos e com o norte global de forma geral, locais de maior interesse da direita de Jair Bolsonaro. Na perspectiva do atual governo brasileiro, diga-se, paternalista, a África não tem importância geopolítica.
Realizando uma comparação entre as duas visões sobre o poder (e a falta de poder) da África nos dois momentos governamentais citados do Brasil, é coerente afirmar que a PEB para o continente africano dos governos Lula visibilizou a agência dos africanos, retirando o véu colocado há muito tempo, tanto no Brasil como no exterior, sobre a suposta estagnação e ingerência da África, baseada na lógica paternalista. Esse continente passou a ser percebido como território essencial para a inserção internacional brasileira, uma oportunidade também para acessar novos mercados e ter influência em foros multilaterais, o que não vem acontecendo com o atual governo.
Para que não sejamos, contudo, ingênuos perante os jogos políticos e geopolíticos, o governo do PT e sua política externa e geopolítica não se baseou apenas numa visão humanista de irmandade, mas numa relação geopolítica na qual a África seria um irmão, sim, mais um irmão mais novo que precisa do mais velho para inserir-se no sistema internacional.
A ideologia paternalista de Jair Bolsonaro em relação à África é explícita. A ideologia humanista de Lula em relação ao continente africano é, a princípio, explícita também. Mas questiono você, meu leitor e minha leitora, principalmente no cenário atual de polarização política do nosso Estado: o Brasil do século XXI, independentemente do espectro político, não tem alimentado e fortificado as históricas relações geopolíticas assimétricas/desiguais em relação à África?
(*) Rafael Barbosa de Jesus Santana é graduado em História pela Unipampa, mestre e doutorando em História pela UFRGS.