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A leitura e o desenvolvimento infantil

Valentina Chakr (*) | 03/07/2023 08:10

A primeira infância é considerada a fase mais importante da vida em relação ao desenvolvimento do indivíduo. Diversos estudos apontam que o desenvolvimento saudável, que abrange os domínios físico, social/emocional e linguístico/cognitivo, tem forte influência no bem-estar, nas saúdes mental e física, nas competências literária e numérica, na criminalidade e na participação econômica, com efeitos ao longo de toda a vida.

Por ser um período crítico, caracterizado por rápido crescimento cerebral e grande neuroplasticidade, o início da infância, particularmente seus três primeiros anos, é o estágio durante o qual o aprendizado da linguagem é mais efetivo.

Ler, assim como cantar e conversar, são práticas que promovem a alfabetização emergente, também chamada de alfabetização precoce. Isso não significa que essas atividades vão ensinar a criança a ler. O que elas fazem de fato é favorecer o desenvolvimento de habilidades necessárias para que as crianças se tornem leitoras competentes (como aquisição de vocabulário, capacidade de expressão e compreensão).

Ler em voz alta para as crianças é uma das maneiras mais efetivas de estimular a alfabetização precoce. A leitura compartilhada é um veículo bem estabelecido para assimilação do vocabulário, da sintaxe e da semântica. Especialistas recomendam que a leitura compartilhada seja realizada o mais precocemente possível, quando as crianças ainda são bebês.

Isso porque seus benefícios são abrangentes e vão além dos já descritos anteriormente. Sabe-se que essa prática influencia positivamente a cognição e a capacidade de atenção, além de contribuir para o desenvolvimento socioemocional da criança. Ademais, a leitura também pode ajudar no estabelecimento dos padrões de sono-vigília, quando essa atividade é realizada na hora de dormir.

De forma especial, a leitura de livros ilustrados ajuda na aquisição de conceitos, pois, ao contrário do que acontece na vida real, em que ações e emoções ocorrem em uma cadência própria, nos livros ilustrados a criança pode revisar e repetir o que lhe é apresentado no seu próprio ritmo.

A literatura cumpre funções junto ao leitor que vão além de melhorar a escrita e ampliar seu repertório informativo. A literatura oferece aos pequenos padrões de leitura do mundo, servindo como entretenimento, aventura estética e subjetiva, o que possibilita a reordenação de seus próprios conceitos e vivências.

A ficção e a poesia são formas poderosas de lidar com as diferentes faces do real. Possibilitam à criança identificar e examinar percepções, sentimentos, fatos, situações, formando, assim, conceitos. Lidam, desse modo, com a realidade concreta, por meio da qual foi simbolicamente construída.

A apresentação sintética, simbólica e essencial de conflitos que atingem os personagens permite aos ouvintes a elaboração, igualmente simbólica, dos seus próprios. Desse modo, os contos possibilitam não só a identificação, como também a prospecção, ou seja, a reformulação das expectativas pela apresentação de perspectivas novas.

O acompanhamento de ações imaginárias, relatadas mediante o simbolismo da linguagem, além do divertimento, permite uma reordenação afetiva e intelectual das vivências que respondem às necessidades infantis. Ao ouvir uma história, a vivência de algo que existia apenas dentro de mim pode transpor essa interioridade e ser localizado exteriormente, como situação vivida por outras pessoas que, é possível, respondam a ela de diferentes maneiras.

Daí a importância que se atribui, hoje, à orientação a ser dada às crianças, no sentido de que, ludicamente, sem tensões ou traumatismos, elas consigam estabelecer relações fecundas entre o universo literário e seu mundo interior, para que se forme, assim, uma consciência que facilite ou amplie suas relações com o universo real que elas estão descobrindo no dia a dia e onde elas precisam aprender a se situar com segurança para nele poder agir.

A literatura propicia que as crianças conheçam algo mais instigante que a realidade simultânea captada pelas telas e algo menos superficial que o discurso apressado delas.

Os textos das obras infantis têm potencial para permitir ao leitor infantil possibilidade ampla de atribuição de sentidos àquilo que lê. Eles estimulam a criança a viver uma aventura com a linguagem e seus efeitos, em lugar de deixá-la cerceada pelas intenções do autor. Nos livros ilustrados, o texto verbal e o texto visual oferecem à criança experiências estéticas com esses dois códigos.

A relação do texto visual com o verbal pode ser de autonomia ou de relação complementar, pode ter sentido de confirmação ou de contraponto. A interação entre eles estimula múltiplas percepções, possibilitando diversos reconhecimentos e interpretações nas leituras dos textos compostos por diferentes signos.

O processo de constituição de um homem depende de sua formação conceitual, e essa, por sua vez, depende dos padrões de interpretação a ela oferecidos. Ao mesmo tempo que a literatura infantil pode ser um instrumento relevante de formação desses conceitos, ela também oferece elementos que podem neutralizar a manipulação do sujeito pela sociedade, pois ela possibilita a reformulação de conceitos e a autonomia de pensamento.

(*) Valentina Chakr é professora adjunta do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRGS e escritora infanto-juvenil.

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