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Combate ao trabalho escravo e o dever de proteção das possíveis vítimas

Por Thiago Gurjão Alves Ribeiro e Luciano Aragão Santos (*) | 08/10/2023 08:30

Muito se falou nos últimos tempos, em função de casos de grande repercussão e dos resultados da operação "resgate 3" — que retirou 532 pessoas do trabalho escravo — sobre o que acontece com as pessoas resgatadas nos desdobramentos das operações de combate ao trabalho escravo. É importante esclarecer alguns aspectos fundamentais daquilo que é a resposta imediata mais importante que o combate ao trabalho escravo pode oferecer: a proteção que deve ser conferida a cada pessoa identificada como submetida a tais situações de exploração.

A subsistência de situações de exploração do trabalho em condições que configuram formas de escravidão moderna não é uma exclusividade do Brasil. Estimativas] divulgadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Organização Internacional para Migrações (OIM) e pela organização Walk Free, relatam a existência de 27,6 milhões de vítimas no mundo, distribuídas por todas as regiões e em diversos setores da economia. Um problema global exige um enfrentamento de semelhante perspectiva, com fundamento em normas internacionais e suporte nas orientações, recomendações e melhores práticas divulgadas por organismos internacionais especializados.

O Protocolo Suplementar à Convenção sobre Trabalho Forçado da OIT, aprovado em 2014 juntamente com a Recomendação nº 203, que traz diretrizes para sua aplicação, colocam em destaque a importância das medidas de proteção de trabalhadores identificados como submetidos ao trabalho escravo. A Recomendação nº 203 preconiza a necessidade de se adotar medidas de proteção eficazes para satisfazer as necessidades de todas as vítimas, incluindo aquelas necessárias à respectiva assistência imediata. O Protocolo de Palermo, que trata da proibição do tráfico de pessoas, também afirma a necessidade de se proteger e assistir as vítimas, incluindo medidas para protegê-las — especialmente mulheres e crianças — da revitimização.

Para orientar o desenho de políticas públicas de proteção das vítimas, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) produziu a publicação "Mecanismos Nacionais de Referência: reunir esforços para proteger os direitos das pessoas submetidas ao tráfico de pessoas"].  Dentre outras importantes diretrizes, a publicação - importante referência também fora da União Europeia  — orienta os países a instituírem mecanismos de identificação precoce de vítimas, o que é considerado essencial para evitar novas violações de direitos humanos.

De acordo com a Osce, a chamada identificação preliminar (preliminary identification) de possíveis vítimas é considerada o primeiro estágio para a garantia de direitos, passando-se em seguida ao necessário período de recuperação e reflexão que deve ser assegurado às pessoas identificadas. Alerta a Osce que "a identificação e proteção das vítimas de tráfico não pode depender do sistema de justiça criminal e da sua capacidade de produzir condenações", visto que "o sistema de justiça criminal funciona sob regras e procedimentos muito diferentes".

Portanto, as melhores práticas internacionais nos ensinam que para assegurar o direito à proteção de pessoas identificadas como possíveis vítimas de trabalho escravo, faz-se necessário garantir a respectiva identificação preliminar, o que deve ser feito pelas autoridades às quais seja atribuída tal competência. A partir dessa identificação, devem ser adotadas as subsequentes medidas de proteção e garantia de direitos – o que não pode depender de qualquer medida relacionada à persecução do crime de tráfico de pessoas ou de exploração de trabalho em condições análogas à escravidão.

No Brasil, a política pública de combate ao trabalho em condições análogas à escravidão atribuiu aos auditores-fiscais do trabalho — autoridades administrativas especializadas no reconhecimento de violações a disposições legais de regulação do trabalho — a missão precípua de identificar preliminarmente os trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravo, operacionalizando o chamado resgate e realizando a emissão de guias para o recebimento de seguro-desemprego. O benefício assegurado por lei garante a subsistência financeira do trabalhador no período de recuperação e reflexão de três meses.

A prática de tais atos administrativos pelos auditores-fiscais constitui etapa fundamental para a garantia dos direitos dos trabalhadores, permitindo o seu afastamento da situação identificada como irregular e o recebimento do benefício que garante um período de recuperação. Juntamente com a auditoria-fiscal, as instituições que atuam nas operações em parceria interinstitucional vão buscar, no âmbito das respectivas competências, a garantia dos direitos sonegados pelos exploradores, inclusive o adimplemento das verbas trabalhistas sonegadas, além das indenizações devidas em cada caso. O Ministério Público do Trabalho, nesse contexto de garantia de direitos, ainda adota as medidas extrajudiciais e judiciais que se façam necessárias para a regularização da conduta trabalhista e para a reparação dos danos de natureza coletiva.

A importante atuação relacionada à investigação criminal e propositura de ação penal não guarda relação com as medidas adotadas para proteção imediata da possível vítima e respectiva garantia de direitos. Deve-se preservar, qualquer que seja o deslinde das medidas adotadas na seara criminal, a eficácia dos atos administrativos de identificação, resgate e proteção dos trabalhadores.

Assim, em tempos em que os membros da comunidade internacional aceleram e intensificam esforços para que se chegue à erradicação do trabalho escravo até 2030, compromisso que integra os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, é importante lembrar e reafirmar alguns pilares da política pública brasileira de combate ao trabalho escravo, que se alinham com as melhores práticas internacionais.

(*) Thiago Gurjão Alves Ribeiro é procurador do Trabalho e mestre em Direito Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Genebra).

(*) Luciano Aragão Santos é procurador do Trabalho, coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

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