Direitos reprodutivos e a objeção de consciência de hospitais privados
Como altamente veiculado na mídia, neste mês de janeiro de 2024, um hospital privado se recusou a aplicar DIU como método contraceptivo por ser uma instituição religiosa que segue os preceitos católicos e do Vaticano, exercendo um suposto direito de objeção de consciência do hospital.
Conceito de contracepção - No que se refere à contracepção, esta é definida como o “uso de métodos e técnicas com a finalidade de impedir que o relacionamento sexual resulte em gravidez” e trata-se de um recurso para o planejamento familiar “para a constituição de prole desejada e programada, de forma consciente”.
Segundo a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, para alcançar a saúde reprodutiva, é necessário haver disponibilidade de informação de métodos seguros para o planejamento familiar, bem como a garantia ao seu acesso. Afinal, os direitos reprodutivos são um direito fundamental de decidir de forma livre e responsável o número de filhos que se quer ter, bem como o momento de seu nascimento e o intervalo entre eles.
Caso concreto e objeção de consciência - Por outro lado, no caso em análise, coloca-se o direito à objeção de consciência que, supostamente (como será analisado adiante) se aplicaria a pessoas jurídicas. Acessando a Resolução CFM nº 2.232/19, artigo 8º, percebe-se que a objeção de consciência médica “é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.
É nítido no referido artigo que a objeção de consciência é um direito aplicado na relação médico-paciente, não se aplicando à instituição como um todo enquanto pessoa jurídica, o que exige a pessoalidade, inclusive porque o artigo subsequente determina que a interrupção da referida relação “por objeção de consciência impõe ao médico o dever de comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde, visando a garantir a continuidade da assistência por outro médico, dentro de suas competências” [5].
Visão da especialista e o texto constitucional - No mesmo sentido, tem-se o relato da advogada Luciana Dadalto em reportagem para a revista eletrônica Consultor Jurídico:
A Constituição traz o direito à objeção de consciência, mas apenas para pessoas naturais (não para as pessoas jurídicas). Isso também está previsto no Código de Ética Médica (CEM). Luciana explica que o código é voltado aos profissionais, ou seja, não regula a atuação das instituições. […] Segundo a advogada, também deve ser levado em conta que a situação viola os direitos de saúde da mulher e o direito constitucional ao planejamento familiar.
Cumpre frisar, ainda que a Constituição define que o direito à saúde, além de ser um direito social (artigo 6º), é direito de todos e dever do Estado (artigo 196), sendo a assistência à saúde livre à iniciativa privada (199). Assim, na Lei 8.080 de 1990, tem-se que:
Art. 20. Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde.
[…] Art. 22. Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento.
Nesse sentido, considerando que são, segundo a mesma lei, princípios do Sistema Único de Saúde a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral e a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (artigo 7º, III, IV), é inadmissível que um hospital privado exerça, de forma institucional, uma objeção de consciência.
Por fim, vale ressaltar que a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos dispõe que a autonomia individual para decidir deve ser respeitada (artigo 5º), bem que a diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideração, não podendo ser invocadas para violar a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais (artigo 12)[8], sendo mais um fator que demonstra a impossibilidade de um hospital privado exercer objeção de consciência por motivos religiosos.
(*) Carolina Dumet é estudante de Direito da Faculdade de Direito da UFBa, membra do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM) e associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).