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Educação antirracista e a construção das subjetividades

Ana Paula Silva dos Reis (*) | 21/11/2022 08:30

A educação antirracista é pautada na Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura africanas e afro-brasileiras dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. No entanto, mesmo com a Lei tendo quase 20 anos, a educação antirracista ainda é um tema pouco aprofundado nas salas de aula, sendo abordado apenas em datas comemorativas, que não possuem uma intencionalidade pedagógica evidente. Além disso, a educação das relações étnico-raciais ainda não é eixo estruturante dos currículos.

É preciso pensar que é também na escola que os estudantes constroem a sua identidade e que os conhecimentos, bem como os materiais didáticos disponibilizados, precisam refletir a diversidade étnico-racial que marca os espaços de ensino, tal qual como deveria ser nos demais campos da sociedade. De acordo com esse raciocínio, os conteúdos trabalhados na escola não devem estar desvinculados do processo de construção dos sujeitos nem da realidade racial no país. Afinal, é nesse espaço que também nos deparamos com conhecimentos históricos, culturais e sociais do lugar em que vivemos, e as relações raciais perpassam todos esses aspectos na constituição dos territórios.

Promover debates no mês de novembro em razão do Dia da Consciência Negra para que os estudantes saibam quem foi Zumbi dos Palmares ou estudem sobre os Lanceiros Negros, quem foram e a sua importância na Revolução Farroupilha, logicamente é importante. No entanto, os saberes e valores africanos e afro-brasileiros estão presentes em todas as áreas do conhecimento – dessa forma, a justificativa de que não é possível relacionar a educação antirracista a determinado componente curricular reflete a total ignorância de quem a reproduz. A mesma ignorância de quem não reconhece o racismo como estrutural da nossa sociedade e que, também, por essa razão, ignora as cruéis e violentas consequências para as pessoas negras e indígenas no Brasil.

As referências positivas e plurais acerca da negritude contribuem para a construção das subjetividades e do sentimento de pertencimento dos estudantes negros. Ao mesmo tempo, desconstroem um imaginário do estudante branco que, distante dessas referências e desconectado de uma realidade que não conhece, vem estereotipar e inferiorizar o estudante negro, perpetuando o racismo. Engana-se, por isso, quem pensa que a temática racial diz respeito apenas às pessoas negras. É preciso conscientizar todos os estudantes pelo saber.

Se, por um lado, a escola ainda reproduz um modelo pedagógico sustentado por um ideal colonialista, que centraliza o ensino nos padrões eurocêntricos, a educação antirracista indica um caminho que conscientiza sobre as relações de poder, bem como possibilita a construção de subjetividades de modo mais democrático, propondo valores embasados nas culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas.

Enquanto mulher negra, artista e professora de arte/dança, reconheço a importância dos campos da arte e da cultura na construção dos modos de representação relacionados a uma poética que exalta a beleza, a ancestralidade e a pluralidade negra. Do mesmo modo, observo como as vivências em outros espaços de produção de saberes trazem ainda mais material para a educação antirracista e podem vir a aproximar os estudantes das suas realidades. É preciso, na educação antirracista, olharmos para os legados que emergem dos clubes e sociedades negras; conhecermos quem são os nossos mestres griôs; estudarmos os enredos das escolas de samba que revelam personalidades da nossa história invisibilizadas nos livros didáticos; reconhecermos as características das mais diversas manifestações culturais pretagonizadas ou de origem na comunidade negra, como o Carnaval, a capoeira, o movimento hip hop, etc.

Tais territórios, manifestações e agentes devem ser referências cada vez mais presentes em todos os níveis de ensino, principalmente na educação básica, já que é nessa etapa que a imagem que o estudante tem de si e dos outros mais interfere na construção das identidades. Ao estudar sobre pessoas negras e buscar saberes como a afroetnomatemática, as ruas com nomes de pessoas negras no bairro, debater sobre livros de autoras negras, pesquisar pessoas negras que tenham seus nomes marcados na história em razão das suas relevantes atuações, o estudante pode se reconhecer e fortalecer a autoestima.

Outro ponto a ser destacado é que, se nos contextos internacional e nacional temos muitas referências para a promoção da educação antirracista, no Rio Grande do Sul também temos várias. Mesmo sendo um dos estados com menor percentual de população negra, o RS é marcado pela resistência desse povo. Por isso, ao citar a educação antirracista e a cultura afro-gaúcha é preciso referenciar Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Oliveira Silveira, Giba Giba, Mestre Borel, Iara Deodoro, Véra Neusa Lopes, Pelópidas Thebano, Maria Helena Vargas da Silveira, Nilo Feijó, Vera Regina Triumpho, apenas para citar alguns nomes.

Enfatizo, ainda, que são fatores importantes na prática de uma educação antirracista não apenas o trabalho dos professores com os estudantes, mas também a atuação da família, a concepção de um projeto político pedagógico que evidencie a pauta por parte da coordenação pedagógica e, ainda, a execução de ações antirracistas, programas de formação continuada, acompanhamento dos planejamentos de ensino e promoção de protocolos para os casos de racismo como responsabilidade das mantenedoras. A professora Nilma Lino Gomes nos indica o currículo como parte do processo de formação humana; sendo assim, a educação antirracista implementada nesse currículo deve ser assumida como compromisso e utilizada como prática cotidiana de maneira ética no combate ao racismo. A escola deve ser um lugar de respeito e visibilidade às mais diversas narrativas, e a educação antirracista é fator preponderante para que isso ocorra.

(*) Ana Paula Silva dos Reis é professora de dança, produtora cultural, bailarina e doutoranda em Artes Cênicas pela UFRGS.

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