Escolas de samba: divulgando, produzindo e refletindo a História
Dizem alguns que no Brasil o ano só começa depois do Carnaval, expressão que, dependendo do momento e do lugar em que é dita, pode possuir distintos significados. Não tenho, porém, dúvidas de que ela é reveladora da importância do período carnavalesco em nosso país. As formas de participar desse momento, o mais esperado do ano para alguns, possui variações. Blocos de rua, bailes em clubes, desfiles de escolas de samba estão entre as possibilidades de se integrar nas atividades.
Os ritmos que levam os corpos aos mais variados movimentos também podem ser múltiplos. Para além de um momento que seria somente de diversão, tendo sentido único para todos aqueles que participam da festa, o Carnaval pode se transformar em espaço de crítica política e social, afirmação ou desconstrução de identidades, inclusive aquelas que caracterizariam a nacionalidade.
No caso das escolas de samba, todas essas oportunidades citadas, sendo possíveis outras tantas, podem estar presentes durante o desfile. Na pesquisa que venho desenvolvendo desde 2020 junto ao Programa de Pós-graduação em História da UFRGS sob orientação e coorientação dos professores Benito Bisso Schimidt e Marcus Vinícius de Freitas Rosa, respectivamente, busco entender tais agremiações como historiadoras públicas.
Ao fazer isso, percebo diferentes potencialidades quando cada uma das escolas de samba executa sua principal exibição do ano. Dependendo das temáticas apresentadas, narradas em forma de fantasias, alegorias, dança e canto através dos sambas-enredo, é possível levar ao alcance de muitas pessoas conhecimentos históricos.
Desde a construção e apresentação do enredo, passando pela produção do samba, do envolvimento da comunidade, dos componentes, até o momento do desfile assistido das arquibancadas, camarotes ou pela televisão, muitos são os que recebem a mensagem emitida.
Não é impossível que o tema apresentado esteja inspirado em produções acadêmicas, por exemplo. Pesquisas produzidas para avaliação dentro do campo científico específico podem chegar a milhões de pessoas através da exibição de uma escola de samba no período carnavalesco. Mas não se pode negar que nos processos de desenvolvimento dos enredos as agremiações produzam as suas próprias narrativas históricas, contando ou não com a participação de historiadores acadêmicos.
Com suas próprias metodologias, formas de fazer específicas, as escolas de samba constroem História. Possuem seus objetivos, entre eles a busca pelo título, mas que podem ir além. Em 2019, por exemplo, o Grêmio Recreativo Escola de Samba (GRES) Estação Primeira de Mangueira, com o enredo “História para ninar gente grande”, trouxe para o debate uma série de questões que envolviam a forma como a História é escrita e ensinada. Já em 2022, com o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, a comunidade de Nilópolis cantou que era responsável por trazer para a avenida “o que a História escondeu”.
No caso da verde e rosa, além de conquistar o título, ela possibilitou diversas reflexões sobre “a História que a História não conta”, afirmando que muitos capítulos da História do Brasil estariam por ser escritos ou seriam incompletos.
Mesmo não produzindo conhecimento histórico a partir de critérios científicos utilizados na academia, as escolas de samba se apresentam como espaços não institucionais que concebem a partir dos seus parâmetros narrativas, não dependendo da autorização da academia, para refletir e contar Histórias.
Alguns dos capítulos considerados ausentes, por não fazerem parte do cotidiano das escolas de educação básica, em alguns casos até das universidades, nos museus mantidos pelas administrações públicas, por não serem contemplados com nomes de ruas ou por não terem sido construídos monumentos para que fossem lembrados, foram escritos com auxílio das escolas de samba.
O GRES Acadêmicos do Salgueiro, em 1963, apresentou enredo sobre a vida de Xica da Silva, personagem hoje bastante conhecida, mas que à época não possuía o mesmo prestígio. Já no Carnaval de 1990, a Sociedade Recreativa Escola de Samba (SRES) Lins Imperial contou na avenida a trajetória de vida de Madame Satã, personagem conhecida no Rio de Janeiro e que naquele momento ganhava visibilidade, no mínimo, nacional. Tal homenagem, que a escola repete em 2023, coloca em cena uma figura que escapa das normas impostas cotidianamente em relação a sexualidade e gênero, ainda difíceis de serem encontradas nas páginas da História. Além dele, Joãozinho da Goméia, homossexual, babalorixá, personagem importante do candomblé, também teve sua vida contada na Marquês de Sapucaí pelo GRES Grande Rio em 2020 em um momento de defesa da liberdade religiosa no Brasil.
Em Porto Alegre, o Carnaval de 2023 é mais um exemplo das possibilidades de se contarem histórias nos tons do arco-íris através das escolas de samba. A Sociedade Beneficente Cultural (SBC) Realeza vai desfilar em homenagem a Nega Lu, importante figura no movimento LGBTQIAP+ do Rio Grande do Sul. É claro que essas páginas que parecem estar presentes somente nos desfiles das escolas de samba são antecedidas e sucedidas por páginas já amareladas sobre figuras como Princesa Isabel, Dom Pedro I e II, Getúlio Vargas ou por fatos como a Proclamação da República, a vinda da família real para o Brasil em 1808, entre outros, que não deixam de ser cantados nas noites de Carnaval.
Assim, a pesquisa que venho desenvolvendo aproxima os desfiles das escolas de samba durante o Carnaval às diferentes dimensões que envolvem a história pública. Para a realização do trabalho, utilizo como fonte principal os sambas-enredo produzidos e apresentados no Grupo Especial do Rio de Janeiro entre os anos de 1981 e 2020 que abordam temas relacionados à história das populações negras no Brasil.
No período estudado foram cantados 558 sambas. A partir do recorte temático realizado, porém, disponho de 106 sambas que auxiliarão no entendimento de que, para além da diversão, os desfiles das escolas de samba podem ser momentos de reflexão histórica, combate à LGBTfobia, luta antirracista e busca pela garantia de direitos para as populações negras no período pós-abolição. Essas são algumas das possibilidades de pesquisa em que as escolas de samba e o Carnaval, a festa e as agremiações podem proporcionar inúmeras reflexões e análises.
(*) Fabrício Romani Gomes é professor de História na educação básica, doutorando no Programa de Pós-graduação em História da UFRGS e membro do CLOSE – Centro de Referência da História LGBTQI+ do RS.