ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, QUARTA  27    CAMPO GRANDE 26º

Artigos

Impactos da covid-19 em pacientes pediátricos de risco

Victor Jablonski Soares e colaboradores (*) | 07/09/2021 08:30

Imagine: você é um profissional da saúde que trabalha com câncer infantil, e surge um novo vírus que está se espalhando rapidamente, colocando em risco muitas vidas. Pouco se sabe sobre como esse patógeno impactará nos seus pacientes. Será que essas crianças estarão mais suscetíveis à infecção ou a desfechos piores em relação às demais pessoas? Existe algum fator comum que possa impactar na sua sobrevivência?

Com o objetivo de responder a esses questionamentos, o grupo formado por pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da UFRGS e do Laboratório de Pediatria Translacional do Hospital de Clínicas de Porto Alegre liderou uma pesquisa para avaliar como a covid-19 impactaria nesses pacientes tratados em 37 serviços de oncologia, hematologia e transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) do Brasil.

Os dados obtidos englobam todas as regiões do país e refletem a realidade desses pacientes frente à pandemia. Por meio desses estudos, identificaram-se fatores de risco para uma pior evolução clínica; seus resultados foram publicados em revistas internacionais. A seguir faremos uma síntese do que foi observado.

Sabe-se que as crianças são menos propensas a terem desfechos ruins – como morte – em relação à população adulta quando infectadas pelo SARS-CoV-2. Isso, contudo, não pode ser generalizado. O câncer, as doenças do sangue e o transplante de medula óssea são situações que podem não só predispor o indivíduo a novas infecções como também dificultar o processo de convalescência. No caso do câncer, os variados tipos de tumores podem afetar diferentes sistemas do corpo. Na leucemia, por exemplo, neoplasia maligna mais frequente na infância, as células cancerosas que têm origem no sistema de defesa do corpo destroem a medula óssea, tornando esse tecido incapaz de exercer suas funções, como defesa e produção de células sanguíneas.

O estudo inicial analisou um total de 179 pacientes pediátricos com câncer que contraíram covid-19. Eles tinham idade variando de 4 a 13 anos, sendo 58% do sexo masculino. Os principais sintomas relatados foram tosse (36%), febre (32%), coriza (22%) e disfunção respiratória (21%).

O dado mais impactante, contudo, foi a alta taxa de letalidade (12,3%) neste grupo, muito superior àquela observada na população pediátrica geral (1%).

Outro dado bastante relevante trazido por este estudo foi o estabelecimento da relação do índice de massa corporal (IMC) com a evolução clínica. Observou-se que crianças com IMC baixo ou alto para a idade tiveram sobrevida global inferior (71,4% e 82,6%, respectivamente) em relação àquelas com IMC considerado adequado (92,7%). Ainda, a gravidade do quadro de covid-19 no momento da apresentação no diagnóstico foi significativamente associada ao óbito, ou seja, quanto mais grave o paciente no momento do diagnóstico, menor a chance de sobrevida.

Com o intuito de entender também o impacto da pandemia em outros grupos de pacientes tratados pela mesma especialidade médica, o grupo realizou mais dois estudos. O primeiro se refere a crianças com anemia falciforme, o segundo incluiu pacientes submetidos ao transplante de células-tronco.

A anemia falciforme é uma patologia que dificulta o transporte de oxigênio, levando à anemia crônica e à obstrução de vasos. Na epidemia por H1N1, esse grupo de pacientes foi especialmente atingido, com muitos evoluindo desfavoravelmente, como mostrado por Strouse e colegas em 2010. Nosso estudo analisou um total de 25 crianças com anemia falciforme e diagnóstico de covid-19 acompanhadas na região Sul e Sudeste do país. Diferentemente do que foi observado na pandemia anterior, não foi observada nenhuma morte associada à covid-19, sendo que a maior parte dos pacientes apresentou uma doença leve ou moderada.

Já no grupo de pacientes submetido ao transplante de medula óssea a situação foi completamente diferente: a sobrevida estimada em quarenta dias foi de somente 69%. Esse resultado indica claramente o grande risco associado à infecção pelo novo coronavírus em tais indivíduos.

O novo coronavírus é especialmente perigoso para pacientes pediátricos com câncer e para aqueles submetidos ao TCTH. Esses dados agregam conhecimento ao que se sabe sobre essa infecção em subpopulações de risco, além de refletir o que é observado na realidade brasileira. Os estudos contribuem também para a identificação daqueles pacientes que se beneficiarão do estabelecimento precoce de acompanhamento e tratamento devido a sua susceptibilidade. Por exemplo, saber que o IMC impacta na sobrevida pode auxiliar em condutas nutricionais com repercussões na evolução dos pacientes. Sendo assim, conhecer as dimensões dos riscos aos quais os pacientes estão expostos pode nos ajudar, enquanto sociedade, a criar estratégias de mitigação dos impactos causados pela covid-19.

O coronavírus entrou para a História como uma das grandes pandemias da humanidade. O impacto social, econômico e humanitário continua e, provavelmente, permanecerá incalculável. O desconhecimento ou a formulação de hipóteses baseadas em histórias prévias, como observamos no comportamento diverso de pacientes com anemia falciforme durante a pandemia de H1N1 e agora com a covid-19, podem levar a conclusões errôneas, à desinformação e, consequentemente, à piora do manejo de saúde de nossa população. É essencial, portanto, o conhecimento de dados objetivos demonstrados por pesquisa científica séria e ética para a criação e implementação de medidas baseadas na realidade e, assim, mitigar os efeitos deletérios deste momento.

(*) Victor Jablonski Soares é discente do curso de Medicina e atua como aluno do programa de Iniciação Científica/FAPERGS.
(*) Mariana Cristina Moraes Corso é biotecnóloga e atua como mestranda do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da UFRGS.
(*) Claudia de Melo Oliveira é farmacêutica e atua como mestranda do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da UFRGS.
(*) Ciliana Rechenmacher é bióloga e atua como bolsista de Pós-doutorado na UFRGS.
(*) Mariana Bohns Michalowski é médica e atua como professora adjunta do Departamento de Pediatria Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Liane Esteves Daudt é médica e atua como professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRGS.

Nos siga no Google Notícias