Índios, fazendeiros e invasões: a história se repete
Quando a Guerra do Paraguai pipocava em nossas fronteiras e o Tenente Alfredo d’Escragnolle Taunay (Toné) com o seu comandante Coronel Manuel Pedro Drago passavam conduzindo a coluna de soldados, vindos do Rio de Janeiro, cortando o centro-oeste e marchando ao pé da Serra de Maracaju pela região pantaneira de Miranda, sobretudo na parte onde hoje é Aquidauana, era para combater uma invasão de terras.
Taunay, que se apaixonara pela jovem e encantadora índia Antônia e depois descreveu o Rio Aquidauana como “o mais belo do mundo”, deixaria seu nome gravado nestas terras largas, desde os banhados de Rio Negro aos atuais distritos de Piraputanga, Camisão e Taunay, antes de cruzar as vilas de Miranda e Nioaque até chegar ao território inimigo, onde começa a heroica "Retirada da Laguna", finalizada no Porto Canuto (localizado hoje em Anastácio), tudo para combater uma invasão de terras.
Eram os paraguaios que invadiam a fronteira brasileira, nos meados da guerra que travou contra a tríplice aliança (Brasil, Uruguai e Argentina), e os soldados brasileiros, já sob o comando do Cel. Carlos Camisão, marchavam contra dos invasores, apoiados pelos índios guaicurus e terenas, que igualmente deram suas vidas em defesa destas terras. Vale acrescentar que durante a guerra, os negros escravos foram convocados como “Voluntários da Pátria”, também dando suas vidas pelas terras brasileiras, iludidos pela promessa imperial de receberem terras de uma sonhada partilha agrária. Da mesma forma, os índios lutaram voluntariamente ao lado dos militares, com o mesmo objetivo: proteger as terras mato-grossenses, onde foram os primeiros a chegar.
Depois do conflito, índios e brancos contabilizaram terras de sobra onde passaram a viver em paz. Mas, aldeias e latifúndios cresceram lado a lado, promovendo desigualdades. E da mesma forma que os soldados negros viraram apenas heróis e quilombolas, os índios viram suas terras – que já ocupavam antes da guerra – serem engolidas pelas fazendas que avançaram cercas e ganharam títulos de propriedade muitos dos quais até hoje questionados.
Ao lado dos 980 soldados (brancos e negros) que morreram nessa “reintegração de posse” determinada em 1875 pelo Imperador Dom Pedro II contra o Paraguai em nossa região, muitos índios deixaram de constar no diário de Taunay. E hoje, uma nova guerra se trava, não mais contra o inimigo invasor, mas entre amigos, contra a invasão silenciosa do latifúndio nas aldeias, e a invasão barulhenta das aldeias nos latifúndios, gerando reação e disputas que só terão fim quando o “novo império” da República fizer valer a justiça e a igualdade de direito entre irmãos, antes que outro país nos obrigue a reunir novamente brancos, negros e índios para defenderem outra vez as mesmas terras.
É preciso construir um mundo igualitário para todos os diferentes, a partir de uma atitude séria e humanista do governo federal para com a demarcação de terras indígenas no Brasil, tantas vezes retardada e modificada. Não basta definir o direito territorial originário dessas comunidades; é preciso ter urgência, respeito e cumprir a Constituição Brasileira, demarcando as áreas e indenizando a quem de direito, evitando mais conflitos desnecessários.
Amplos estudos antropológicos e multidisciplinares já foram feitos, e o que se vê é omissão e falta de vontade do Governo Federal, que só age movido pelo sofrimento dos povos indígenas ou pelo prejuízo dos produtores rurais, quando o certo seria acionar o Ministério da Justiça, para fazer andar os processos administrativos de demarcação iniciados há mais de quinze anos (desde a publicação do Decreto 1775/96), com dezenas de casos em que as terras já foram identificadas, na maioria com as pendências judiciais resolvidas.
Mas o processo discriminatório contra o índio já existe antes dessa e de outras guerras e teve continuidade após esta última, com a partilha das terras indígenas aos colonos e até a militares no pós-guerra.
Desta forma, tanto a invasão da Fazenda Buriti, em Sidrolândia, quanto da Fazenda Esperança, no distrito de Taunay, em Aquidauana, tem o mesmo conteúdo histórico e político em desfavor da população indígena. A primeira é considerada pelo governo como terras de ocupação do povo terena; a segunda, de outra forma, pertenceu a eles. E embora se exijam indenizações do governo para os proprietários e mais respeito dos índios em suas operações, as invasões não deixam de ser uma reação lamentável e ao mesmo tempo natural contra o poderoso sistema opressor, que escraviza o índio, mantendo-o cada vez mais confinado em reservas cercadas de latifúndios que aniquilam gradativamente seus valores ancestrais, sua força, seus direitos, sua cultura, sua dignidade e sua sobrevivência.
A possível comercialização das terras retomadas pelos índios não procede, pois, segundo a Constituição Federal, a terra de ocupação não é escriturada para os índios, mantendo-se propriedade da União. Nesse caso, o índio é apenas um usuário, não podendo vender, arrendar ou transferir, o que, de certo modo, garante ao país, a preservação da área com mais garantia de sustentabilidade, tornando-a reserva ecológica.
Os Terena, tradicionalmente pacíficos e agricultores, são abundantes no Mato Grosso do Sul e predominam o pantanal de Aquidauana. São originários do Chaco Paraguaio e pertencem ao tronco linguístico Aruaque. Durante a guerra foram nossos aliados ao lado dos cavaleiros Guaicurus, a quem eram submetidos bélica e culturalmente. Após a guerra se desestruturaram, espalhando-se em cidades e fazendas, mas, em Aquidauana, mantêm-se em bom número vigiados e protegidos pelos morros e pantanais. Com dificuldade, mantêm suas tradições, como dança culinária e artesanato, e quase perderam o idioma terena, dominado pelo Português. Com a sua produção agrícola também abalada, muitos índios trabalham sazonalmente em plantações diversas e criação de gado na região.
Estudos registram nove etnias indígenas em MS: além dos Terena, existem remanescentes de Guarani, Kaiowá, Kadiweu, Kinikinau, Atikum, Ofaié, Kamba e Guató. No município de Aquidauana há nove aldeias rurais e uma urbana, todas terena, incluindo o distrito indígena de Taunay (em homenagem ao oficial d’Escragnolle Taunay, herói da Guerra do Paraguai). A prefeitura construiu na cidade uma feira exclusiva para os índios expandirem seus produtos, sendo que a mulheres também são vendedoras ambulantes.
No município de Anastácio, a cidade se desenvolveu em torno de uma aldeia urbana, que leva o nome de sua matriarca, Umbelina Jorge. Essa comunidade hoje luta para se tornar urbanizada e reduzir o impacto social do aculturamento evidente. No entanto, é uníssono na “Aldeinha” (como é chamada) o desejo de se conquistar, além das melhorias urbanas, uma área rural apropriada para o cultivo e outras atividades silvícolas. Assim, a história das invasões se repete, acrescida da discreta invasão das cidades pelos índios.
(*) José Pedro Frazão é professor, jornalista, romancista e poeta membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.
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