Ler livros impressos é uma experiência do passado?
A resposta à pergunta do título, se for afirmativa, pode se tornar argumentação baseada na exclusão de experiências.
Não, neste texto não pretendo que o argumento exclua, mas que aquilo que se elabore adicione, amplie, agregue, … Escrevo não somente sobre a leitura mediada por um suporte, mas principalmente sobre experiências que podem ser vividas ou não por meio da leitura.
Além disso, não assumo o “sim” como resposta à pergunta do título porque o que pretendo com este texto não é defender a leitura digital tampouco levantar bandeiras pela exclusividade da leitura de livros e textos impressos. O que este texto pretende é refletir sobre o que é ler e, principalmente, sobre quais experiências estão envolvidas nessa ação, seja quando vivida em interação com livros impressos ou com livros em telas; leituras distintas, mas não excludentes.
A reflexão proposta traz em si a necessidade de duas definições: o que é leitura? o que é livro?
A leitura carrega em si uma dupla dimensão: ler é decodificar; ler é compreender. O conhecimento sobre o sistema de escrita alfabética (ou a capacidade de decodificar a escrita) associado à compreensão (saber sobre o que se lê e ser capaz de estabelecer relações) servem de base para a processualidade que caracteriza a leitura: nos constituímos leitoras e leitores ao longo da vida.
E se o ser leitora ou leitor não é uma transformação com dia e hora marcada, ler torna-se ação que precisa acontecer longitudinalmente no tempo da vida cotidiana, incluindo os diversos objetos que convidam nosso olhar a ler (decodificar e compreender sensivelmente), nosso toque a manusear, nosso olfato a aspirar.
Livro “pode ser muitas, muitas coisas, pelo menos dez mil coisas”, afirma o autor e ilustrador Murray McCain em Livros, um pequeno livro (mas com grandes provocações para pensar) de capa dura, traduzido e publicado no Brasil em 2014. Ao longo das páginas, as palavras de McCain, acompanhadas das ilustrações de John Alcorn, provocam a (re)pensar sobre afinal o que é um livro, esse objeto que em nossa sociedade já é conhecido, mas que nos últimos tempos parece estar se tornando obsoleto ou sobre o qual há uma tentativa de que se torne arcaico.
Essa tentativa de tornar o livro impresso um objeto em desuso em detrimento do livro digital carrega em si primeiro o afastamento da experiência manual de sentir o livro (peso do livro, textura do papel da capa e das páginas). Isso leva ao apagamento da experiência de entender como funciona um livro, com sua capa, contracapa, série de páginas, dependente do movimento de abrir na posição correta para que o conteúdo seja acessado, dependente do manuseio ao virar das páginas – um movimento cuidadoso que começa na pinça formada ao unir os dedos indicador e polegar e que ajuda a puxar o canto direito inferior da página que, depois (a depender do tamanho do livro, do peso do papel que constitui a página) se transfere para a mão espalmada que a empurra adiante, da direita para a esquerda, até que talvez (a depender também da espessura do livro) encontre o dedo polegar da outra mão que firma essa página na conclusão de seu movimento, impedindo que ela retorne para que o olhar possa passear pela página seguinte que surge.
Esse deslocamento, do ir (e também do vir) das páginas, não é infinito, mas demarcado pela quantidade de páginas que o livro possui, uma medida percebida pelos números crescentes localizados no rodapé de cada folha ou uma medida que novamente depende do nosso toque, mais precisamente dos nossos dedos em pinça que medem a espessura do conjunto envolvido pela capa e que poderemos ler.
Os leitores que me leem poderão pensar que sou uma saudosista. Mas pergunto: será que precisamos sempre abandonar experiências e colocar novas em seu lugar? Por que, afinal, abandonar a leitura no livro impresso? Por que privilegiar uma experiência em detrimento da outra?
Alguns poderão dizer que ler em dispositivos móveis é mais ecológico, outros poderão dizer que ler em telas economiza espaço, pois não há como guardar tantos livros físicos. Outros poderão dizer que a mudança é natural.
Eu poderia refutar dizendo que os dispositivos móveis demandam energia elétrica e que as bibliotecas podem continuar existindo, quem sabe de modo mais colaborativo e não somente individual com acervos (res)guardados e escondidos, mas abertos a uma circulação mais ampla entre os leitores. Mas a questão não é entrar em debate ou embate. O que este texto propõe é agregar opiniões, não descartar ou indicar vencedores. Sim ao debate, não ao combate.
Ler em telas é prático e versátil (afirmo eu que sempre viajo com algo para ler e, sem dúvida alguma, sei por experiência que o dispositivo móvel liberou espaço na minha mala). Ler livros impressos é experiência para além do olhar (afirmo eu que atuo no ensino, na pesquisa e na extensão fomentando a leitura literária voltada à infância).
E por falar em livros literários infantis, limitar o acesso desses textos somente às telas é limitar a experiência da leitura. A literatura infantil em seus livros impressos oferece múltiplos convites: para abrir o livro e virar as páginas, para sentir as páginas, texturas, imagens (mesmo que bidimensionais) que acompanham as palavras em seus projetos gráficos, motivando a curiosidade dos leitores para o que virá a seguir.
Se continua me considerando saudosista ou que não se pode fugir à mudança (o que eu também concordo, mas não de maneira definitiva), te convido a buscar alguns livros literários ou informativos voltados às crianças e a refletir: que experiências elas não teriam se os lessem somente em tela? Livro impresso e livro em tela, a leitura mediada por cada um desses meios tem características próprias e oportuniza experiências únicas. Não se trata de um ou de outro, mais importante nesse debate é que a leitura é ação atemporal e importante, devendo ser mediada valendo-se de todos os meios que permitam a sua experiência.
(*) Marília Forgearini Nunes é professora da Faced (Faculdade de Educação) e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordena a Brinquedoteca Universitária da Faced.