Mudanças climáticas e o seguro rural
Sem cumprir as leis ambientais e sofrendo com mudanças climáticas, lideranças do Agro se mobilizam para ampliar o seguro rural com dinheiro público. Rios e florestas seguem em agonia.
Eventos climáticos extremos têm atingido os estados da região sul e centro-oeste, causado grandes perdas na safra de milho e soja. A produção de leite também está em alerta, pois a estiagem traz sérios prejuízos às pastagens que, consequentemente, afeta a produção leiteira. A situação contrasta com as fortes chuvas verificadas na Bahia, Minas Gerais, Goiás e São Paulo, causando inundações e com isso prejuízos sociais e econômicos, sobretudo nos pequenos municípios que tem o agronegócio como principal atividade.
As perdas expressivas do agronegócio brasileiro e a solução mágica do “seguro rural” que algumas entidades do setor ruralista defendem, demonstram que o setor não está preparado para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas em curso.
A solução do “seguro rural” que alguns defendem tem mostrado suas deficiências, a medida que se deteriora as condições climáticas e ambientais e aumenta o endividamento público, com o pagamento destes seguros. O Estado atualmente custeia de 20% a 40% do investimento total e até R$ 120 mil por produtor pelo programa de subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). Interessante notar que alguns candidatos à presidência da república já estão incorporando esta demanda em seus programas de governo. É importante apontar que não se trata de um empréstimo, mas de uma subvenção pública, recurso este que jamais retornará aos cofres públicos para que seja investido em programas voltados às mudanças climáticas, por exemplo.
O orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2021 foi de R$ 1,72 bilhão para todas as ações de proteção ao meio ambiente. Em contrapartida, para o mesmo ano, o governo federal transferiu ao PSR a cifra de R$ 1,18 bilhão, destinado a garantir a produtividade do agronegócio. Com este recurso, o produtor rural se protege financeiramente de eventos climáticos adversos (i.e. geadas, alagamentos, chuvas de granizo) e/ou perdas na produtividade por fatores difusos. Adquirem assim, a capacidade de recuperação econômica frente as perdas de um “ano atípico”.
A grande questão é que todos os anos têm sido “atípicos” e o endividamento público também. Basta um único evento climático numa região, para que se tenha prejuízos em grande escala, arruinando as contas públicas e seus segurados. Uma medida que vem sendo tomada pelo poder público é elevar os prêmios (custo de contratação) ao produtor em decorrência das incertezas climáticas. Entretanto, o mercado que até a pouco tempo se pautava pelas séries históricas e tendências de longo prazo, não está conseguindo se ajustar às previsões atuais.
Na tentativa de compensar as perdas econômicas para as mudanças climáticas, investidores estão expandindo as áreas agrícolas e de pecuária, aumentando o desmatamento e, consequentemente, as condições climáticas de uma região. Além disso, esta mobilidade tem deixado um rastro de destruição com o aumento de terras abandonadas e degradadas.
O atual modelo da monocultura exportadora e da pecuária extensiva é preocupante. Temos como exemplo o que se observa no arco amazônico (área que abrange o Acre, Amazonas, Rondônia, Mato Grosso, Pará e Maranhão), onde se registra os maiores índices de desmatamento, violência rural e a invasão de terras públicas de todo o país. Para alguns, a expansão assegurada e o seguro rural expandido, a demanda do agro será atendida e o produtor estará protegido perante a perda da produção, pois assim que acessar o PSR, no próximo ano ele voltará ao jogo – nem que seja para perder mais uma vez. Com os recursos públicos o modelo vem se sustentando e, em conjunto, todo mundo “ganha”. Apesar da lógica, ela não se sustenta, pois, este modelo exclui o ponto fundamental: os eventos climáticos extremos, que não ocorrem sem a participação humana, agravados pelas políticas públicas tomadas no território.
Precisamos sempre alertar, sobretudo aos novos produtores rurais, o conhecimento já assimilado pelos produtores antigos de que existe uma relação direta entre ganhos na produção com a manutenção da vegetação nativa e a produção de água, do aumento da umidade e a redução da temperatura, do aumento da fertilidade do solo e o aumento da produtividade.
Não custa lembrar que “a cobertura vegetal protege o solo do impacto das gotas de chuva e reduz o escoamento da água. As raízes retêm partículas de terra e abrem caminho para a infiltração da chuva. O sombreamento mantém o solo frio e úmido e protege os lençóis freáticos. Em áreas de recarga de aquíferos é a vegetação nativa que regula o quanto de água vai infiltrar e o quanto de solo fértil não será levado pela correnteza. Na beira dos rios, as matas ciliares seguram o barranco, evitam a entrada de poluição, reduzem a evaporação e controlam o pulso das enchentes ao segurar a água que entra e sai.
Rios assoreados pelo solo carreado se tornam mais rasos, mais lentos, com mais água exposta ao sol, começam a invadir áreas maiores nas cheias, ficam menos previsíveis e mais destrutivos. Nascentes protegidas pela mata e recarregadas pela infiltração jorram com força o ano inteiro. Rios sem proteção crescem de maneira destrutiva na cheia e morrem na seca. Florestas atraem chuvas a grandes distâncias e as alimentam com sua própria umidade. Solos cobertos têm temperatura média vários graus mais baixos que o de áreas abertas. Está tudo no dia a dia de quem vive no campo e depende de umidade, chuvas e boa temperatura para produzir”.
Passados quase 10 anos do novo Código Florestal que instituiu a obrigatoriedade do Cadastro Ambiental Rural (CAR), este não foi concluído. O CAR permite visualizar as respectivas reservas legais, suas matas ciliares, rios, nascentes, banhados e áreas produtivas de cada propriedade rural. Este cadastro nos daria a oportunidade de compreender a organização do território brasileiro. Permitiria entender quem cumpre e quem não cumpre a legislação, inclusive mobilizar ações de restauração das áreas degradadas. O CAR traria segurança jurídica para resolver brigas fundiárias intermináveis e prevenir os conflitos que estão crescendo a todo momento.
Foi a grande promessa ruralista na proclamação do Novo Código Florestal: o Brasil entregava as regras de proteção ambiental e os produtores rurais entregavam um cadastro. Só o Brasil entregou. Para acessar o PSR e receber ajuda do governo, um produtor também não precisa fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Basta uma certidão negativa de débitos com o governo (CADIN). Infelizmente, não sabemos se o nosso segurado segue as regras ambientais, em especial quanto aos recursos hídricos, proteção das áreas de proteção permanente (APP’s), etc., mas nós contribuintes financiamos o seu seguro contra a seca.
Os últimos sete anos foram os sete mais quentes já medidos em mais de um século e possivelmente serão mais frios que os próximos 7 anos. (The past seven years have been the hottest in recorded history, new data shows – The Washington Post). O Agro precisa se adaptar urgentemente com base na ciência, como o fez há 50 anos quando a Embrapa iniciava seus trabalhos com uma variedade de soja para o Cerrado. É a renovação da confiança no velho Brasil que nos trouxe até aqui e é também uma escolha por colocar o estado mais uma vez a serviço de uma elite rural que se recusa a oferecer sua parcela de sacrifício enquanto se afirma o grande motor da economia. Tudo isso no exato momento em que o mundo enfrenta as consequências de uma relação predatória com o ambiente e cresce a pressão pelo sacrifício de todos, em especial, dos mais ricos.
Seguro não é proteção e sequer salvação. Proteger contra uma ameaça é prevenir. E sem cuidar das florestas não vai ter seguro rural que nos salve e nem expansão de lavoura e pecuária que dê conta de mitigar o desperdício de terras e recursos. Estamos acelerando um modelo que tem dado claros sinais de esgotamento e nos levando a crises de abastecimento, de produção de energia e inflação.
Neste contexto, desconfio que mesmo o Código Florestal como ficou não poderá salvar a lavoura. O modelo das monoculturas é que precisa ser finalmente superado nas próximas décadas. Mas isso é papo para um outro governo. Para os próximos quatro anos, o desafio é botar o pé no freio e a cabeça na realidade e na busca de soluções.
(*) Thomaz Lipparelli é PhD em Ciências Biológicas pela UNESP.