Narrativas da escassez hídrica no Brasil face às ameaças da mudança climática
No período entre 2014 e 2016, a região Sudeste do Brasil enfrentou uma crise hídrica sem precedentes, colocando em risco a saúde e o bem-estar de uma grande parcela da população. Esse evento, associado a condições extremas de variabilidade climática, revelou a vulnerabilidade significativa de algumas das regiões mais dinamicamente econômicas do país.
Além disso, expôs profundas desigualdades e a fragilidade dos sistemas metropolitanos e econômicos, que dependem fortemente de recursos hídricos. Os eventos climáticos extremos, como secas rigorosas e chuvas intensas, coloca o país em constante alerta para o risco de impactos profundos e sistêmicos.
No artigo publicado Assessing water scarcity narratives in Brazil – Challenges for urban governance pesquisadores da USP e da Durham University, do Reino Unido, analisaram as narrativas sobre a escassez hídrica no Brasil, destacando sua importância na formulação de políticas. As narrativas e discursos sobre questões ambientais e climáticas não são neutros, mas estão profundamente enraizados nos contextos sociais e políticos.
Determinadas narrativas têm o poder de influenciar os processos de tomada de decisão, legitimando algumas soluções e desconsiderando outras, além de incluir ou excluir as necessidades de grupos sociais específicos. O estudo procurou compreender essas dinâmicas e seu impacto na gestão dos recursos hídricos. Assim, a pesquisa fornece informações valiosas sobre o poder das narrativas de escassez de água, seu impacto na formulação de políticas e o imperativo de práticas de gestão de água inclusivas e sustentáveis.
Utilizando ferramentas avançadas de classificação de texto e aprendizado de máquina, os pesquisadores realizaram uma análise abrangente de um extenso conjunto de dados textuais de artigos jornalísticos brasileiros publicados entre 2010 e 2021. Essa abordagem, baseada no processamento de linguagem natural, permitiu uma exploração aprofundada das diversas narrativas que cercam a escassez de água no Brasil.
As descobertas revelam uma variedade de tipologias narrativas que trazem diferentes perspectivas sobre a questão da escassez de água. Entre essas tipologias, destacam-se narrativas que enfatizam a institucionalidade/gestão, o aumento do desmatamento e fatores causais, como a redução das chuvas na explicação para a escassez da água. É interessante observar que alguns dessas narrativas tendem a minimizar a responsabilidade dos governos locais na gestão eficaz da água, alinhando-se com perspectivas centradas no clima.
O estudo também identificou a apropriação política de certas narrativas, incluindo aquelas negacionista que minimizam a gravidade da escassez de água e enfatizam sua abundância desse recurso vital. Em contrapartida, as narrativas de justiça hídrica chamam a atenção para os desafios do acesso limitado à água e da infraestrutura inadequada, uma questão que foi de grande preocupação durante a pandemia de covid-19, enfatizando a necessidade urgente de distribuição equitativa de água e de melhorias na infraestrutura.
A identificação das diversas tipologias e características de narrativas nos permite explorar as complexidades e incertezas que permeiam a questão da escassez de água no Brasil. Concentrar-se exclusivamente em uma única perspectiva, pode dificultar a implementação de abordagens integradas e abrangentes para a gestão eficaz e sustentabilidade hídrica. A fim de enfrentar o desafio da escassez hídrica no contexto da crise climática, é fundamental considerar múltiplas perspectivas, atores e setores envolvidos, visando encontrar soluções holísticas e equitativas.
(*) Lira Luz Benites Lazaro é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP.