O atendimento ginecológico da mulher cisgênero homossexual e bissexual
Experiências prévias de homofobia e heterossexismo por parte das mulheres homossexuais e bissexuais podem afetar diretamente a procura por cuidados de saúde, fazendo com que elas evitem exames de rotina e a procura de aconselhamento médico, o que vai de encontro ao direito constituicional de acesso universal à saúde. Preocupados com essa questão, realizamos uma revisão para abordar aspectos importantes no atendimento à população de mulheres cisgênero homossexuais e bissexuais, focando tanto em atributos da consulta ginecológica quanto em um panorama de dados sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Quer na esfera pública, quer esfera na privada, existem desigualdades entre os mais diversos grupos sociais no que tange a uma assistência em saúde de qualidade. Um grupo significativamente vulnerável nesse assunto é a população LGBTQIA+ (sigla que define a comunidade Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais/Transgênero, Queers, Interssexo, Assexual e todas as demais formas de orientação sexual e identidade de gênero existentes) que tem muitas vezes as suas demandas não atendidas, em decorrência, principalmente, do despreparo profissional ainda existente.
Esse despreparo dos profissionais na consulta ginecológica resulta na não recomendação de exames essenciais para a saúde da mulher e na carência de orientação médica sobre sexo seguro para essas mulheres. Sendo assim, considerando a importância da consulta ginecológica e do(a) médico(a) – tanto o ginecologista quanto o geral – na saúde da mulher, é necessária a formação de profissionais que entendam as especificidades de mulheres que fazem sexo com mulheres, sejam elas lésbicas ou bissexuais, e saibam como atender às suas demandas da melhor maneira possível.
Nesse cenário em que o cuidado em saúde de mulheres que se relacionam sexualmente com mulheres continua pouco abordado e discutido, inevitavelmente também há falhas na prevenção de doenças, particularmente as ISTs. Tanto por desconhecimento quanto por preconcepções errôneas, prevalece a percepção entre profissionais da saúde de que o sexo entre mulheres está associado a menor chance de contrair esse tipo de doença.
Outro mito é o de que no sexo entre lésbicas e bissexuais não há necessidade de uso de preservativos – em grande parte, por associá-los apenas à contracepção, o que é evidenciado pela ausência de opções voltadas especificamente a esse público no mercado brasileiro. Não obstante, essas são convicções extremamente perigosas, uma vez que o sexo entre mulheres pode, sim, transmitir ISTs, em função de envolver uma relação corporal com possível contato com secreções, entre órgãos sexuais e até com sangue.
A consulta ginecológica frequentemente é a primeira, e por vezes a única, via de contato com o cuidado em saúde para muitas mulheres. O acolhimento é primordial para a preservação e manutenção da relação médico-paciente, seja qual for o âmbito de atendimento.
Ademais, essas mulheres necessitam de suporte em relação a quaisquer experiências de abuso e exclusão, incluindo possíveis traumas importantes no atendimento em saúde. Isso porque experiências prévias de homofobia e heterossexismo podem afetar diretamente a procura de cuidados de saúde, fazendo com que elas evitem exames de rotina e a procura de aconselhamento médico no futuro.
Outro ponto importante a abordar é o planejamento reprodutivo: se há desejo de gravidez, necessidade de reprodução assistida, necessidade de métodos contraceptivos, se houve gravidez indesejada e se houve aborto. Ajudar as pacientes a planejar e conseguir a concepção é uma parte importante do atendimento do médico obstetra/ginecologista. Nesse sentido, deve-se ter em mente que as necessidades específicas de planejamento familiar das mulheres lésbicas e bissexuais variam de acordo com seus recursos financeiros e com desejos pessoais. Dessa maneira, os profissionais de saúde devem aconselhar e fornecer serviços ou providenciar encaminhamento para serviços especializados para quaisquer opções de fertilidade ou para adoção.
Também é essencial abordar aspectos de saúde mental. Apesar de ser um tema importante para todos os pacientes, a população feminina é marcada por diversos estressores, depressores e ansiogênicos, dentre eles: a violência doméstica, a não divisão de afazeres domésticos, abusos sexuais e morais, discriminação, dependência financeira e até mesmo uso de substâncias, e esses são pontos que devem perpassar a anamnese.
Estudos demonstraram que mulheres lésbicas e bissexuais apresentam maiores taxas de abuso de álcool e outras drogas e de distúrbios alimentares, o que ocasiona impactos negativos na sua saúde física e mental.
Sobre a prevenção das ISTs, é muito importante ressaltar que a melhor forma de prevenção é a combinação das barreiras protetoras com a testagem periódica (sífilis, HIV, hepatites), além das vacinas contra HPV e hepatite B.
Enfim, o acolhimento, o respeito e o profissionalismo ético devem permear toda a abordagem, propiciando ambiente confortável para a paciente expor seus desejos, queixas e vulnerabilidades. Nesse sentido, é vital que os profissionais de saúde sejam adequadamente instruídos a lidar com as demandas específicas dessas mulheres, para que se sintam mais capazes e, consequentemente, mais seguros para acolhê-las apropriadamente. A ausência de bibliografia sobre rastreamento de doenças no Brasil indica a necessidade de maior incentivo aos pesquisadores para o desenvolvimento desse tema; além disso, reflete a marginalização, seja por desconhecimento, seja por preconceito sobre a pauta de diversidade sexual e seu impacto na saúde.
(*) Ana Selma Picoloto é professora adjunta do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Carolina Bonatto do Amarante é aluna de graduação na Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Guilherme Fernandes Gonçalves é aluno de graduação na Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Laura Ferrarese Brum é aluna de graduação na Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Rodrigo Martins Teixeira é aluno de graduação na Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Giovanna Sandi Maroso é médica residente do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.