ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, QUARTA  27    CAMPO GRANDE 26º

Artigos

O que fazer para não passar vergonha no "Dia do Índio"?

Tiago Resende Botelho e Pedro Pulzatto Peruzzo (*) | 19/04/2021 13:29

O dia 19 de abril é nacionalmente conhecido como o “Dia do Índio”. É corriqueiro, anualmente, vermos sujeitos não indígenas praticando atos que violentam a cultura indígena e seus modos de ser, fazer e viver numa suposta “comemoração” ao dia reservado aos povos originários. Para além das comemorações com a música da Xuxa ou com pinturas e penduricalhos que remetem aos povos indígenas que habitaram outras regiões do globo, é importante destacar, de início, que a data não se dá de forma aleatória, mas da resistência desses povos.

Entre os dias 14 e 24 de abril de 1940, realizou-se no México o Congresso Indigenista Interamericano para discutir medidas de proteção aos territórios indígenas. Ocorre que, por ser um evento organizado por líderes políticos não indígenas, acreditavam os líderes indígenas que não teriam protagonismo e, portanto, boicotaram os primeiros dias do evento. Entretanto, de forma estratégica, na data de 19 de abril, adentraram ao Congresso e fizeram suas vozes serem ouvidas.

Entre os encaminhamentos adotados estavam: igualdade de direitos e oportunidades para a população americana, respeito à identidade histórica e cultural buscando melhorar a situação econômica, o indigenato como política de Estado, a criação do Instituto Indigenista Interamericano e a definição do dia 19 de abril como Dia do Índio. Apesar do Brasil não ter adotado as deliberações do Congresso, Getúlio Vargas, convencido por Marechal Rondon, criou, o “Dia do Índio” na data de 19 de abril pelo decreto-lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943.

Desde então, esta data que representa resistência e luta dos povos indígenas, vem, muitas vezes, sendo transformada em momento folclórico, preconceituoso e estereotipado por não indígenas, em especial, por práticas escolares no ensino fundamental e médio.

Vale registrar que muitos povos indígenas ainda que construam o 19 de abril como uma data de resistência, têm preferido fazer comemorações e atividades focadas no mês de agosto, que é considerado mundialmente como o mês internacional de luta dos povos indígenas pela Organização das Nações Unidas.

Precisamos considerar que o Estado brasileiro, por séculos, adotou a política integracionista, que buscava integrar, por meio de muita violência e medo, os indígenas na sociedade não indígena. Primeiro tivemos as Guerras Justas, que era uma forma da Coroa portuguesa legitimar o genocídio dos povos originários. Depois tivemos, no século XX, uma espécie de maquiagem pra esse extermínio, que ocorreu pela criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Para bom entendedor, meia palavra basta para deixar claro que o lugar reservado ao indígena, mesmo após o início da República, foi o de proletário, fato confirmado pelo Relatório Figueiredo, que orientou o eixo temático sobre povos indígenas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.

Consequentemente, foi construído no imaginário social que o indígena possui uma única forma de ser no mundo, inclusive, reforçada por muitos livros didáticos, que difundiu a ideia racista de que é só aquele que usa cocar, arco e flecha, mora na oca e anda nu. Além disso, essas políticas definiram uma única forma de ser sujeito de direito. Assim, mentiram para a sociedade brasileira e não contaram que os povos originários são diversos e estão bem distantes de ser um povo de cultura única. Para que se tenha noção, ainda hoje, após muitos projetos para a dizimação desses povos, existem em torno de 305 etnias e 274 línguas indígenas, segundo o IBGE.

Ou seja, há no Brasil e no Mato Grosso do Sul uma diversidade de cultura construída pelos povos indígenas. Sim, povos indígenas no plural, pois coletivamente esses sujeitos se organizam socialmente e dão sentido às lutas e resistências que sofrem por séculos.

Portanto, nós, não indígenas, precisamos urgentemente compreender que o dia 19 de abril não é data folclórica, mas momento de apoio à luta desses povos que, em uma suposta democracia, lutam, ainda, por direitos básicos como terra, água, alimentação, moradia, segurança e tantos outros. Assim, se você é não indígena como nós, há formas de você não passar vergonha e violentar sujeitos brasileiros que lutam pelo seu direito à cultura originária.

Não se aproprie da data, em especial as escolas, para pintar o rosto ou colocar cocar em crianças e adolescentes não indígenas, como referência à cultura indígena e ao seu dia. Nós, não indígenas, jamais seremos indígenas ou estaremos os valorizando por colocar elementos dessa cultura em nossos corpos. Essa prática ajuda a construir a errada ideia de que ser indígena é usar este ou aquele elemento e se portar dessa ou aquela forma e, inclusive, reforça o pensamento de que indígena que não esteja com cocar, arco e flecha, morando na oca ou andando nu e venha a usar calça jeans, celular ou more na cidade deixe de ser indígena. Nenhum italiano que adentra um restaurante japonês sai de lá japonês pelo simples fato de comer sushi!

Na verdade, ser indígena passa pelo autoreconhecimento e consciência do próprio indivíduo como sendo de uma determinada etnia e o seu coletivo o reconhecendo pertencente ao grupo. Portanto, não passa por nós, não indígenas, definir quem é ou não indígena. Em qual momento você se colocou à avaliação de terceiro para saber quem você é? Em nenhum momento, não é por mudar de cidade, país, religião, hábitos, vestes, moradia, bairro que você deixa de ser quem você é. Não use, portanto, o Dia do Índio como data folclórica. Esta é uma data de luta dos povos indígenas e, para não passar vergonha, ao invés de reforçar preconceito, precisamos apresentar o debate de forma séria, científica e histórica. É o mínimo que nós, não indígenas, podemos fazer. Inclusive, ouvindo e apoiando mais os povos indígenas e suas reivindicações, em abril, em agosto e no ano inteiro!

Além disso, indígenas são brasileiros e não estão fora do Estado nacional, bem como não são sujeitos incivilizados, bárbaros e primitivos. Assim, não existe nós (brasileiros) e eles (indígenas). Existe, nós: indígenas e não indígenas. A Constituição Federal, no Art. 231, garante o reconhecimento aos Povos Indígenas de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Portanto, indígenas são brasileiros tanto quanto você e eu. São garantidos a eles, constitucionalmente, que mantenham seus modos de ser, fazer e viver. É direito, por exemplo, dos indígenas, ter acesso ao SUS, à escola, à universidade, votar e ser votado e, somado a tudo isso, o direito de ter seu território originário demarcado, falar e ter respeitada sua língua, professar sua espiritualidade, sua cultura e tudo que garanta seu modo de vida.

Indígenas não são violentos e preguiçosos. São sujeitos que originariamente já estavam nesse continente antes da invasão colonial, mas que resistiram e resistem às várias imposições agressivas daqueles que queriam e querem roubar suas terras. Defini-los como violentos e preguiçosos está diretamente vinculado ao processo de construção da história pelo próprio europeu, pois diferente do que pregam, o indígenas, para não se submeterem às práticas violentas do colonizador, libertavam-se por meio das fugas, bem como se recusavam a vender sua mão de obra por quinquilharias. Não se trata de serem violentos ou preguiçosos, mas de se defenderem de violências daqueles que atravessaram o oceano para dizimar, roubar e matar. Legítima defesa histórica! Sujeitos indígenas são seres trabalhadores que possuem uma organização de trabalho que respeita a natureza e sua própria vida.

Precisamos não aprisionar de forma perversa o indígena no ano de 1500 e numa gravura estereotipada dos livros de história. É bem verdade que os indígenas seguem desde 1500 lutando pelo direito de se manterem vivos e protagonizaram a história desse país. Entretanto, nós, não indígenas, precisamos compreender e aprofundar o debate indo além do processo colonial. Não dá mais para debatermos essa realidade como um passado distante. A pobreza em que nós, não indígenas, impusemos a eles é um problema da sociedade contemporânea. São crianças morrendo de desnutrição, são idosos às margens da rodovia, são terras não demarcadas, são negações de Direitos básicos à água, à alimentação e à moradia. Assim, precisamos compreender que a luta indígena diz respeito à nossa sociedade atual e não apenas a um momento da história distante.

Não dá mais para nós, não indígenas, seguirmos passando vergonha no dia 19 de abril. É chegado o tempo de olharmos ao redor, pois eles, povos indígenas, todos os dias estão nos ensinando como sermos seres menos preconceituosos. Como disse Daniel Munduruku, é preciso nos atualizarmos. “Atualizar significa trazer pro presente, pro agora, pra este momento que nós estamos vivendo. [...] pensar a temática indígena não como uma temática presa ao passado, mas que ele comece a olhar, a ver, de hoje pra trás. Aí ele vai entender o que é o ‘pra trás’… Mas olhando de hoje, olhando esses povos como seus contemporâneos”.

(*) Tiago Resende Botelho é Doutor em Direito Socioambiental pelo PUCPR, coordenador e professor do curso de Direito da UFGD e Presidente da Comisssão de Direitos Humanos da 4º Subseção Dourados/Itaporã . Pedro Pulzatto Peruzzo é professor do programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Campinas, advogado voluntário do MORHAN e consultor geral da COmissão de Direitos Humanos da OAB/SP

Nos siga no Google Notícias