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O trabalho de cuidado

Eli Gómez Alcorta (*) | 29/06/2021 13:30

O cuidado é um trabalho. Um trabalho que garante que nossas necessidades materiais e psicológicas básicas sejam atendidas, assegurando nosso desenvolvimento humano. O trabalho do cuidado inclui atividades diárias diversas como cuidar de crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiências físicas e mentais; mas também atividades da casa, como cozinhar, lavar, limpar, entre tantas outras. Embora essa atividade seja essencial para a reprodução da força de trabalho, ela praticamente não é reconhecida e, quando há remuneração, os salários costumam ser baixos.

Um relatório recente da Oxfam (2020) apontou que as mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo. Seriam mais de 12,5 bilhões de horas diárias despendidas por mulheres e meninas em todo o mundo a essa tarefa. De acordo com o relatório, essas horas todas correspondem a uma quantia de cerca de 10,8 trilhões de dólares por ano que subsidia a economia global – três vezes mais do que o valor gerado pela indústria tecnológica, por exemplo.

Em comunidades rurais de países de baixa renda, as mulheres dedicam até 14 horas diárias ao trabalho de cuidado não remunerado, cinco vezes mais que os homens. Na África do Sul, as mulheres realizam em média mais de três vezes o trabalho diário de cuidados em casa que os homens. No Brasil, por exemplo, 90% do trabalho de cuidado é realizado no interior das famílias, sendo que 85% é feito pelas mulheres. Em 2019, as mulheres dedicavam em média 21,4 horas semanais, enquanto os homens apenas 11 horas. Analisando apenas os casos em que as mulheres trabalham fora de casa, elas cumprem em média 8,2 horas a mais em obrigações domésticas que os homens que também trabalham fora.

Esse trabalho doméstico só aumentou durante a pandemia. A obrigatoriedade da quarentena ou de algum grau de isolamento social tem tornado menos invisível a necessidade do cuidado, já que as pessoas passam mais tempo em casa, cuidando não apenas do ambiente do lar, mas também de si, da família, de vizinhos e até da comunidade.

As medidas de higienização recomendadas durante o combate ao coronavírus demandam maiores esforços: constante limpeza de produtos e roupas ao entrar em casa, as crianças deixaram de ir à escola, a maioria das refeições estão sendo feitas em casa, o espaço do lar se suja com mais frequência, os espaços de lazer e convívio social, como Igrejas, parques, bares, praças e comércio estão restritos. Isso significa que todos aqueles cuidados supracitados cresceram exponencialmente, e continuam recaindo sobre as mulheres.

Uma recente pesquisa da Sempreviva Organização Feminista e da revista digital Gênero e Número, sobre O trabalho e a vida das mulheres na pandemia, estima que 50% das brasileiras passaram a cuidar de alguém nesse período e 72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia, especialmente pelo cuidado com crianças, idosos ou pessoas com deficiência. Além disso, 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a manutenção financeira da casa em risco, número ainda maior entre mulheres negras (55%). Ainda, 41% das mulheres que seguiram com suas atividades laborais durante a pandemia com manutenção de salários afirmaram que estão trabalhando mais na quarentena.

Dentre as que podem exercer atividades profissionais de casa e realizar o chamado teletrabalho ou home office, o desafio é imenso, já que trabalho externo e doméstico se misturam e parecem não ter fim, um se sobrepondo ao outro. O tempo da faxina, da higienização, de cozinhar e lavar se somam às tantas outras demandas externas. Mães se tornam educadoras de seus filhos, filhas de idosos e enfermos se tornam cuidadoras; os trabalhos outrora compartilhados com creches/escolas e outras profissionais e ajudantes se acumulam e se justapõem, apagando a divisão entre tempo trabalho e tempo casa. A realização de trabalhos que exigem alta concentração, por exemplo, não combina com uma rotina de interrupções. Após a implementação de medidas de isolamento em diversas partes do mundo, equipes editoriais de publicações científicas têm noticiado uma queda acentuada na quantidade de submissões de artigos assinados por mulheres em todo o mundo, enquanto as publicações dos homens aumentaram em quase 50%.

Além de constante, o trabalho do cuidado doméstico requer outras considerações. É preciso levar em conta as atividades das outras pessoas ao redor, não apenas dos dependentes, mas os barulhos, as distrações, demandas de atenção. Esse cuidado psicológico, de amor e zelo, também são tarefas atribuídas às mulheres no espaço privado e geram enorme carga mental e emocional. Assim, atividades que já recaiam sobre as mulheres antes da pandemia seguem seu mesmo destino agora, mas de forma extenuante.

A casa não é espaço apenas de relações privadas, mas também de produção e reprodução de comportamentos, regras e valores sociais, bem como de hierarquias e da divisão sexual do trabalho. E se a regra é que o trabalho doméstico do cuidado recaia sobre as mulheres, é o trabalho remunerado delas que está em jogo, sua autonomia de renda e também suas possibilidades de profissionalização e qualificação.

Não é à toa que mulheres ocupam a maior porcentagem do trabalho informal no mundo, consequência da flexibilidade necessária para ter tempo de cuidar e manter os serviços domésticos (não remunerados) para a família. Um relatório da Oxfam afirma que, em todo o mundo, cerca de 42% das mulheres não conseguem encontrar emprego por conta do trabalho que dedicam à casa e à família, enquanto apenas 6% dos homens enfrentam esse entrave.

Além disso, a ideia de que o papel social da mulher historicamente está ligado às tarefas do cuidado conduziu a uma especialização que destina às mulheres das camadas médias e proletárias da sociedade as “ocupações subalternas, mal remuneradas e sem perspectiva de promoção”, com baixo prestígio e pouco reconhecimento social, como afirma a socióloga brasileira Heleieth Saffioti, no livro A Mulher na Sociedade de Classes (2013), publicado pela primeira vez em 1967. “Como a atividade ocupacional feminina é posta em segundo lugar, não há, para ela, nem motivos e nem tempo para que se dedique eficazmente, através das organizações sindicais, a melhorar sua posição de barganha no mercado de trabalho”, complementa (2013, p. 98).

No Brasil, o IBGE estima que em 2050 haverá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidado (pouco mais de um terço da população do país) entre idosos e crianças. Isso teria que preocupar a sociedade como um todo sobre quem deveria se responsabilizar por esse trabalho, já que o curso da história continuaria a conduzi-lo às mulheres. Esse mesmo cenário se alastra por todo o mundo.

Soluções imediatas à crise não são difíceis de encontrar. Como a Oxfam aponta, se o 1% mais rico do mundo pagasse uma taxa extra de 0,5% sobre sua riqueza nos próximos 10 anos, seria possível criar 117 milhões de empregos em educação, saúde e de cuidado para idosos. Mas, dadas as atuais condições, não há nenhuma perspectiva concreta de que isso possa se realizar. Pelo contrário, o que vimos ao longo da pandemia foram ajudas econômicas estrondosas dos Estados para grandes bancos e empresas. Nos países onde surgiu o debate sobre a possibilidade de um imposto extraordinário às grandes riquezas, como no caso da Argentina e do Chile, houve enorme resistência por parte da elite mais poderosa que até o momento impediu qualquer avanço nesse sentido.

A partir disso, entendemos o que feministas como Alexandra Kollontai explicaram há quase um século: “O capitalismo colocou um fardo esmagador sobre os ombros da mulher: fez dela uma trabalhadora assalariada sem ter reduzido seus cuidados como governanta ou mãe”.

(*) Eli Gómez Alcorta é ministra das mulheres, gênero e diversidade da Argentina.

 

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