Ômicron: responsabilidades e a alteridade que se impõe
Após tímidas tentativas de pensar na possibilidade de quebra das patentes das vacinas contra covid-19 produzidas por grandes companhias farmacêuticas, o que poderia ampliar o acesso para os países mais pobres, o tema foi esquecido. Com arrogância, nos países com acesso à fartura de doses de vacina, debateu-se intensamente como seria desfrutado com segurança o verão boreal, enquanto ao sul do Equador, bilhões de pessoas permaneciam sem acesso à vacinação. No Brasil, não sem arrogância, os planos envolviam um apoteótico carnaval.
O surgimento da variante ômicron foi uma questão de tempo e, como sabemos, o Sars-CoV-2 mutou rapidamente. O fenômeno não surpreendeu o mundo científico, mas raramente a ciência dita o comportamento dos tomadores de decisões cruciais para a sobrevivência dos povos. O triste espetáculo de tentar segregar o risco da nova variante a alguns países africanos demonstrou que o norte global e os seus êmulos ao sul do Equador nada tinham aprendido em dois anos de tentativas infrutuosas de contenção da pandemia além das suas fronteiras.
Assim, a tentativa de disfarçar a responsabilidade, ao menos parcial pelo surgimento da nova variante, fracassou e cresce progressivamente o número de vozes que afirmam que, sem acesso equânime à vacinação, outras variantes assombrarão o nosso já obscuro horizonte. Tristemente, a nova onda pandêmica não sensibilizou os detentores do poder econômico global para dedicar recursos e vacinas para mudar a condição dos países mais pobres. Até hoje, os países ricos continuam nesse estado de irresponsabilidade coletiva em que a necropolítica floresce e, apesar da luta de organismos multilaterais para acelerar a vacinação dos desfavorecidos, os países pobres parecem destinados a continuar sem vacinação por muito tempo.
As iniciativas para garantir acesso às vacinas para a maioria da população mundial têm tropeçado nas barreiras construídas pela engrenagem que sustenta a disfunção crônica e perversa da economia mundial com concentração de riqueza galopante, apesar dos milhões de mortos causados pela pandemia. A discussão de acesso às vacinas parece ter sido esquecida no Brasil a partir do momento em que o país conseguiu, apesar dos criminosos esforços em contrário do governo federal, dar andamento à vacinação com participação crucial da Fiocruz e do Instituto Butantan. Certo é que a pandemia demonstrou que a pauta brasileira de autossuficiência em vacinas só terá impacto se contribuir, solidariamente, para mudar a realidade que impera no mundo que não tem acesso a imunizantes. Sem essa consciência, o país terá o seu destino unido àqueles que, ao ignorarem o drama dos menos favorecidos, sofrerão inevitavelmente o prolongamento da pandemia com o surgimento de novas variantes.
Felizmente, as vacinas continuam protegendo contra a doença grave e a morte pela variante ômicron e, nessa felicidade, pode existir o risco de banalizar a sua virulência. Algumas evidências apontam que a ômicron possui menor capacidade de afetar o tecido pulmonar, porém, o número de óbitos causados por ela em pessoas não vacinadas é preocupante. Em países com cobertura vacinal razoável, constatou-se que o vírus permanece com capacidade de causar doença grave e morte e que, provavelmente, a redução na proporção de casos graves e óbitos causados pela nova variante decorre fortemente do efeito da cobertura vacinal na população.
No Brasil, país privilegiado com uma invejável história de sucesso no combate a doenças infecciosas por meio da vacinação, aproximadamente 30% da população permanece não vacinada contra a covid-19. A desigualdade socioeconômica regional manifesta-se de forma clara também na cobertura vacinal, tendo o mesmo efeito perverso observado entre países ricos e pobres. Certamente, há o efeito deletério dos grupos negacionistas antivacinas, porém, sendo esses grupos pouco vulneráveis à mudança de comportamento, a atenção deve ser dirigida aos problemas de acesso que podem e devem ser resolvidos.
Os não vacinados merecem atenção e cuidado, considerando que têm um risco maior de doença grave e de morte por covid-19. Dado que as vacinas oferecem proteção parcial contra a infecção e que pessoas vacinadas podem adquirir e transmitir a doença, a exigência do comprovante de vacinação para compartilhar ambientes fechados não deve ser interpretada como estratégia de exclusão ou de cerceamento de direitos.
Ao contrário, trata-se de uma estratégia de proteção das pessoas não vacinadas que têm maior risco de adoecer. Assim, sendo a frustração e a revolta, os sentimentos que institivamente poderíamos experienciar em relação à atitude de rejeitar a vacinação, o exercício de alteridade impõe-se para que, de forma solidária, transmitamos a expectativa de cuidado aos mais vulneráveis, sejam eles pessoas sem acesso às vacinas, sem informação adequada para a tomada de decisão, sejam simplesmente negacionistas. Eis o nosso dever ético e o aprendizado necessário para estarmos coletivamente preparados para futuras ondas pandêmicas.
(*) Gustavo Romero é graduado em Medicina pela Universidade Francisco Marroquín, Guatemala e mestre e doutor em Medicina Tropical pela Universidade de Brasília.