Pode uma pessoa cis sofrer transfobia? O que aprendemos com o caso da boxeadora
Com o término dos Jogos Olímpicos de Paris, podemos, enfim, analisar criteriosamente e com profundidade as origens da polêmica envolvendo a boxeadora argelina e, agora, campeã olímpica, Imane Khelif. Para contextualizarmos os fatos, precisamos primeiramente relembrar que o furor foi deflagrado com uma declaração da boxeadora italiana Angela Carini, após abandonar o ringue em que enfrentou Imane. Às lágrimas, ela afirmou nunca ter sido socada com tanta força. Para a autoproclamada defensora dos direitos das “mulheres de verdade”, J. K. Rowling, tamanho descalabro não poderia passar incólume. Afinal, deixar um “homem espancar uma mulher com tamanha violência” seria uma prova cabal da misoginia e do alinhamento com o “novo movimento para o direito dos homens” que comprometem as mais altas instâncias desportivas. Suas declarações no ex-Twitter rapidamente ganharam coro, incluindo a voz do próprio Elon Musk, cujas opiniões sobre pessoas trans são no mínimo problemáticas, como já bem colocou a filha que ele se recusa a reconhecer.
O resultado, como pudemos observar ao longo dos primeiros dias de agosto, foi uma intensa campanha de ódio e difamação virtual baseada na acusação infundada de que Imane seria uma mulher trans. Portanto, se qualquer ação ou comportamento fundamentado seja no medo, na intolerância, na rejeição, no ódio ou na discriminação contra pessoas trans devido à sua identidade de gênero é transfobia, Imane foi incontestavelmente vítima de transfobia! Mas, como pode uma pessoa cis ou cisgênero, aqui entendida como aquela que se identifica com o gênero que lhe foi imposto ao nascimento a partir da observação de sua genitália, como a boxeadora argelina, sofrer transfobia?
Para resolvermos esse aparente paradoxo, precisamos primeiramente entender quais são as origens da transfobia e como ela está profundamente enraizada em nossa socisedade. De acordo com a autora transfeminista Julia Serano, a transfobia e, de uma forma mais geral, a LGBTfobia se originam no que ela denomina sexismo oposicional: a crença de que o masculino e o feminino constituem duas categorias rígidas e mutuamente exclusivas, cada uma possuindo um conjunto único e disjunto de atributos, aptidões, habilidades e desejos. Juntamente com o chamado sexismo tradicional, a crença de que os homens e a masculinidade são superiores às mulheres e à feminilidade, constituem dois dos mais importantes pilares que sustentam um cistema de opressão baseado na hierarquização fictícia entre corpos. Portanto, a mera existência de mulheres trans e travestis, ou de qualquer outra corpa que borre tal separação artificial, constitui uma ameaça a essa divisão binária e antipodal de gênero da qual depende a hegemonia cultural e política masculina.
Neste contexto, surge, então, uma ansiedade que é retroalimentada pelas inseguranças que as pessoas têm sobre as suas próprias identidades de gênero. Essa ansiedade, por sua vez, catalisa a aglutinação de pessoas em câmaras de eco, nucleando grupos cada vez mais extremistas, como aqueles alinhados à ideologia de Rowling, que atacam qualquer pessoa que não seja “mulher o suficiente” e que, por isso, deve ser transgênero. Assim, qualquer pessoa se torna um alvo em potencial do que tem sido denominado transvestigação. Trata-se uma investigação conduzida principalmente por meio de evidências fotográficas ou de vídeo com o intuito de descobrir o sexo imposto ao nascimento e, com isso, determinar se uma dada pessoa é trans ou não. Por exemplo, se você for musculosa ou praticar artes marciais, você não é feminina o suficiente, tornando-se, pois, um alvo perfeito para esses transvestigadores.
No momento em que se institui essa patrulha de gênero, nenhuma mulher, cis ou trans, está mais a salvo. Qualquer característica pode e será usada como evidência contra a sua mulheridade. Se usa muita maquiagem, é para esconder os traços masculinos. Se usa pouca ou nenhuma maquiagem, é um homem tentando se passar por uma esportista. O resultado são as agressões e violências que vimos não apenas no caso da Imane, mas também no de inúmeras mulheres cis que não performam a feminilidade sacramentada por nossa socisedade e que, por isso, são assediadas, discriminadas e agredidas em shoppings, bares e impedidas de usar o banheiro feminino. Por isso, a luta das mulheres trans e travestis é a luta de todas as mulheres.
(*) Por Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP
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