Por uma vida nada óbvia
A democracia permite-nos debater sobre diversos temas, e quanto mais controversos e transversais eles forem, mais se avolumam as vozes e opiniões advindas dos variados segmentos sociais.
Porém, há um limite ético que demarca o substrato dos discursos e que, por consequência, repelem da cena democrática aqueles que violam direitos fundamentais. Suplantar esse limite ético implica, por sua vez, retrocesso civilizatório, contribui para a deterioração social e desbota o colorido de diálogos emergentes à democracia.
Um exemplo claro e vivaz de ações, práticas e discursos que, deliberadamente, aviltam à natureza humana são aqueles caracterizados como racismo. O necessário combate a essa ideologia desumanizadora é o mote da comemoração ao dia da consciência negra, definida pela data de 20 de novembro.
É sobre o significado decorrente do simbolismo dessa data que iremos aqui tratar, sob a ótica de uma mulher negra de origem popular, hoje Defensora Pública.
A vida para uma pessoa pobre e negra dificilmente resultará em conquistas “óbvias”. Falo de uma obviedade extraída de uma linearidade de acontecimentos e realizações pessoais e profissionais muito bem estabelecida em gerações anteriores ou expectadas pelos pais.
De modo geral, na classe média, é esperado que pais que mantenham um lar equilibrado tenham filhos que, desde sua tenra idade, se alimentarão suficientemente bem e frequentarão escolas que estimulem precocemente sua capacidade cognitiva; que seus filhos se graduem em universidades públicas, falem inglês e pratiquem esportes com desenvoltura; que, após se graduarem em curso superior, iniciem sua carreira profissional com relativa facilidade engajada pela influência e apoio de parentes e amigos; que se casem e ocupem espaços de decisão nos mais diversos níveis de influência; e que, por fim, tenham filhos com acesso a mais privilégios do que aqueles acumulados na geração anterior.
Por trás dessa “denúncia” da obviedade não se estar a desconsiderar o esforço individual e os méritos que a classe média branca historicamente proporciona aos seus. Os ganhos pessoais e as conquistas profissionais são sempre comemoráveis e jamais deverão ser desconsiderados a partir de uma microvisão de mundo.
Entretanto, aqui se propõe a reflexão sobre a razão pelas quais essa obviedade não se manifesta, de modo geral, nas famílias compostas por pessoas negras, majoritariamente pobres e confinadas nas camadas sociais baixas. A resposta pode ser extraída das estatísticas, herança maldita de quase quatro séculos de escravidão e que evidenciam o racismo que mancha nossa democracia.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[1], de 2019, brancos têm renda 74% superior à de pretos e pardos; cargos gerenciais, estratégicos, portanto, são ocupados por 68,6% de brancos contra 29,9% de pretos ou pardos; quanto à distribuição de renda e condições de moradia, cerca de 15,4% das pessoas brancas ganham menos que cinco dólares e cinquenta centavos por dia, enquanto que pretas e pardas, que dispõem da mesma renda configuram 32,9% desse total; para cada grupo de cem mil jovens, em 2017, 34 corresponde ao número de homicídios de pessoas brancas, enquanto que entre as pessoas pretas e pardas esse número salta para 98,5; considerando-se a representação política, 75,6% dos deputados eleitos em 2018 são pessoas brancas, enquanto que apenas 24,4% são pessoas pretas e pardas.
Não é difícil concluir que o acesso ao mercado de trabalho, à água potável, ao saneamento básico, à educação de qualidade, à segurança, dentre outros tantos direitos básicos é sistematicamente subtraído dos estratos sociais mais baixos e, por outro lado, é largamente oferecido às classes mais altas, configurando-se, sob a ótica dos mais pobres, como verdadeiros privilégios desigualmente distribuídos entre os cidadãos brasileiros.
Somente através do combate ao racismo estruturalmente arraigado na sociedade brasileira é que essas estatísticas serão pareadas, atacando-se a causa dessas disparidades, o fundo dessas desproporções. O combate ao racismo no sistema democrático deveria ser assunto unânime, liquidante, e discursos que ignoram ou legitimam o racismo deveriam ser incogitáveis em razão do limite ético que pesa sobre temas que atingem a dignidade humana.
Contudo, a ideologia racista ainda tem espaço em círculos de debates ou travestidos em negacionismo e em condutas discriminatórias, que cinicamente legitimam a violência por trás das desigualdades sociais, econômicas e políticas que empurram as pessoas negras para pobreza ou retêm-nas na miséria.
No estágio civilizatório atual, deveríamos estar debatendo sobre quais mecanismos são mais eficazes ou qual metodologia deveria ser empregada para que as pessoas negras tenham acesso amplo a direitos básicos concedidos à maioria das pessoas brancas, de forma que o Brasil, enfim, arvore-se ao patamar de desenvolvimento pleno.
Contudo, enquanto houver segmentos que, direta ou indiretamente, defendam o racismo em solo pátrio, seja através do negacionismo, seja através da (re)legitimação do mito da democracia racial à moda de Gilberto Freyre, há muito que resistir em busca da efetivação da cidadania plena das pessoas negras.
O dia 20 de novembro simboliza justamente a resistência, a luta por igualdade e pela inclusão plenas de pessoas negras em espaços de poder e de representatividade.
Representa o fomento à adoção de práticas antirracistas contínuas nas instituições públicas e no setor privado e a ruptura do terrível teto de vidro que impede que crianças, adolescentes e jovens negros tenham acesso a direitos básicos e ascendam socialmente, estilhaçando a “obviedade” às avessas, manifesta em evasão escolar, trabalho infantil, encarceramento e desnutrição.
(*) Camila Maués dos Santos Flausino é defensora pública desde 2013, titular da 4ª Defensoria de Defesa da Mulher de Campo Grande.