Relações interpessoais e bem-estar infantil
A compreensão de que as crianças não são “miniadultos” e de que elas têm necessidades específicas do “ser criança” é recente na história da ciência. O século passado foi importante para o surgimento de marcos significativos para a garantia da proteção da criança e do adolescente, como a Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1959, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, em 1990.
A partir de então, a ciência passa a estudar a realidade a partir de indicadores subjetivos que envolvem a opinião e a avaliação das crianças e dos adolescentes sobre o seu próprio bem-estar, entendendo a criança como cidadã de direitos. Nesse sentido, estudos que avancem na compreensão dos fatores protetivos para a saúde mental das crianças e dos adolescentes são importantes para que estratégias de promoção e prevenção de saúde mental sejam adotadas, possibilitando um desenvolvimento infantil positivo.
A avaliação de cada um sobre a satisfação com a sua vida é o que chamamos de bem-estar subjetivo. Um dos fatores associados ao bem-estar subjetivo infantil são as relações interpessoais, uma vez que as interações que as crianças têm com outras pessoas – sejam familiares, amigos ou professores – contribuem para seu autoconceito e suas estratégias para resolver problemas.
As relações podem ser harmônicas e ter um papel positivo no desenvolvimento social, afetivo e cognitivo da criança e do adolescente, mas, também, quando mal estabelecidas, podem levar a dificuldades no desenvolvimento de habilidades de comunicação e na capacidade de lidar com desafios emocionais.
Para avançar nas pesquisas relacionadas ao tema, o Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária da UFRGS (GPPC) realizou um estudo com o objetivo de compreender as perspectivas de crianças quanto às suas relações interpessoais e habilidades socioemocionais. Essa pesquisa faz parte de um projeto de pesquisa maior, que busca elaborar, desenvolver e avaliar a viabilidade de um programa de intervenção psicossocial para a promoção do bem-estar de crianças em contexto escolar com design quase-experimental.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com uma amostra de 14 crianças de 10 a 11 anos, do 6.º ano do Ensino Fundamental de uma escola estadual de Porto Alegre/RS. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia/UFRGS. Foram realizados quatro grupos focais a partir de perguntas norteadoras.
Os discursos das crianças foram gravados, transcritos, e os conteúdos textuais processados no software Iramuteq e analisados pelas técnicas de nuvem de palavras e análise de similitude e proximidade.
A literatura científica aponta que relacionamentos com familiares e amigos podem proporcionar apoio social e emocional. Nos resultados do estudo, as falas apontam que a interação com os outros envolvia um compartilhamento de emoções, o que diz sobre suas habilidades de pedir ajuda quando precisam, de falar sobre suas próprias emoções e de compreender os sentimentos de outras pessoas.
É importante ressaltar que os conflitos também estiveram presentes nas falas das crianças como situações em que a família invalida suas emoções e faz uso de agressões verbais. Desentendimentos entre as próprias crianças também foram citados, como situações em que colegas faziam comentários negativos sobre outros.
Com relação à análise de palavras, o vocábulo “mãe” foi trazido pelas crianças associada à regulação da autonomia. A família tem um papel fundamental para regular o que a criança pode ou não fazer, como se pode sair com os amigos fora da escola, se pode se deslocar pela cidade sozinha ou se pode usar redes sociais.
A palavra “mãe” também esteve relacionada à busca por um adulto de referência das crianças, revelando que elas têm como espelho seus cuidadores. Ainda sobre a família, surgiu a temática do luto, visto que alguns tinham tido perdas. As crianças trouxeram discursos associando a mudança na estrutura familiar a partir dos lutos e de que forma se sentiam com suas perdas, o que se relaciona com o bem-estar subjetivo.
A pesquisa revelou também que as palavras “sentir” e “ficar” foram centrais nas falas dos participantes, indicando que as relações interpessoais despertam pensamentos e emoções, e que a atenção da família às necessidades das crianças faz com que elas se sintam bem. As crianças demonstram consciência sobre os elementos positivos e negativos de suas relações e, também, sobre o que lhes traz bem-estar nessas interações.
As falas de duas participantes da pesquisa reforçam a importância de escutar as crianças, porque a ideia de que criança é sinônimo de alguém que não tem opinião própria nunca foi verdade e já não pode mais ser aceita pela sociedade:
“Eu acho que é um tema muito difícil de a gente falar. Não ser escutada é muito difícil. Quando a gente tem a voz que as pessoas não querem saber ou às vezes não sabem lidar também com aquilo que a gente tá levando. E é mais difícil ainda quando você é criança.”
“[…] a gente estava falando de que muitas vezes a gente não é escutado. Principalmente por um adulto.”
Esta pesquisa traz subsídios para a realização da intervenção psicossocial com essas crianças, reforça o compromisso da universidade pública com o retorno à comunidade e o compromisso que precisamos ter com a infância e com o bem-estar das crianças, visto que os resultados encontrados possibilitam que a população infanto-juvenil seja mais bem contemplada pelas políticas públicas.
Por fim, é importante colocar as crianças como protagonistas de suas trajetórias de vida, para que sejam escutadas e possam encontrar adultos capazes de potencializar e estimular relações interpessoais mais saudáveis e positivas, colaborando para o seu desenvolvimento e bem-estar subjetivos.
(*) Letícia Fabrício Ponsi é graduanda em Psicologia e membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária.
(*) Carine Tabaczinski é doutoranda no PPG em Psicologia e membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária.
(*) Lívia Maria Bedin é professora no Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade e do PPG em Psicologia. Coordena o Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária.