Reprodução assistida, projeto parental e responsabilidade civil
As repercussões dos múltiplos usos das técnicas de reprodução humana assistida no campo da responsabilidade civil são infindáveis, formando um mosaico de situações jurídicas existenciais, patrimoniais e dúplices que permitem a configuração de danos indenizáveis, que, de forma didática e sintética, podem ser categorizadas em três eixos centrais: relações entre médicos, clínicas ou centros de reprodução assistida e seus pacientes, de índole existencial.
Eis que a tutela do corpo e da saúde se colocam em cena, mas com importantes reverberações patrimoniais, visto que geralmente são técnicas que envolvem custos dos mais diversos; impactos no direito ao planejamento familiar, uma vez que envolve a elegibilidade às técnicas e a formação de entidades familiares com o nascimento da futura prole; e, as questões relativas à criopreservação de embriões excedentários, incluindo a sua qualificação e destinação.
A rigor, tais procedimentos conformam um conjunto de técnicas paliativas que permitem a concretização do projeto parental por aqueles que não podem ter filhos biologicamente vinculados naturalmente, seja em razão da infertilidade ou da elegibilidade individual ou por casais homoafetivos ou transgêneros. A inexplicável e persistente inexistência de lei específica sobre o tema no Brasil aprofunda os dilemas e as inseguranças em relação ao uso das técnicas de reprodução assistida.
Com sua contumaz percuciência, Stefano Rodotà pontua que a responsabilidade civil é “como uma campainha de um alarme”, uma vez que “se presta muito a seguir as novas tendências determinadas em uma organização social, e que oferece a elas uma primeira forma de tutela, que demandariam uma intervenção do legislador, que ainda não estão maduras e percebidas pela sociedade e pelos parlamentos.”
Decerto que a variada cartilha de problemas que rondam a reprodução humana assistida, ainda que infiram situações delicadas, não permite mais afirmar que não estariam devidamente sazonadas para deslinde pelo legislador. Pelo contrário, o “apagão” legal inunda cada vez mais o Poder Judiciário com demandas reparatórias, que poderiam ser evitadas com uma disciplina jurídica equilibrada, que contemplasse os múltiplos interesses e previamente balizassem os valores envolvidos a partir da moldura imposta pela legalidade constitucional.
A responsabilidade civil no cenário atual funciona mais como um “extintor de incêndio” do que “campainha de alerta”, de viés nitidamente paliativo, cuja tendência é o agravamento nos próximos anos, uma vez que inexiste mobilização congressual voltada à aprovação de uma lei sobre a matéria e mesmo que tal iniciativa se desenhasse nos próximos anos a composição da vigente legislatura não parece ter a sensibilidade necessária para legislar adequadamente sobre o assunto.
As episódicas regras dispersas no direito brasileiro (como, por exemplo, o art. 1.597 do Código Civil, e o art. 5º, da Lei de Biossegurança) e as normas de caráter administrativo (como o Provimento n. 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que trata entre outros temas sobre o “registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida”) e deontológico, estas editadas pelo Conselho Federal de Medicina, revelam a fragilidade das relações jurídicas e os dramáticos impasses frutos da escassa disciplina jurídica sobre a temática.
Desde 1992, resoluções são publicadas pelo órgão fiscalizador com o objetivo de balizar as condutas médicas e resguardar sua atuação, embora, na prática, constituam o principal referencial ético, com repercussões no campo jurídico, sobre a reprodução humana assistida no Brasil, o que descortina a hipertrofia legislativa do CFM em temas bioeticamente sensíveis e carentes de produção legal no âmbito do Poder Legislativo brasileiro. A acelerada sucessão de atos normativos nos últimos anos demonstra a urgente necessidade de regulamentação do tema e evidencia o déficit democrático na tomada de decisões sobre os mais variados dilemas que permeiam a procriação humana artificial.
A Resolução n. 2.320, de 1º de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina, repete diversas disposições já presentes nas resoluções anteriores, mas inova ao suprimir a disciplina de pontos importantes como, por exemplo, o descarte de embriões, antes, denominados abandonados, o que, a rigor, parecia afrontar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510.
Por outro lado, permanece o limite etário de 50 anos às candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida, a vedação da redução embrionária na hipótese de gestação múltipla, a limitação da transferência de embriões de acordo com a idade das mulheres, bem como a proibição do caráter lucrativo da doação de gametas ou embriões e da cessão temporária de útero.
Com isso, velhas questões ressurgem e geram impasses desconfortáveis para os pacientes de tais técnicas, notadamente no campo do diagnóstico genético pré-implantacional, da atual possibilidade de conhecimento dos doadores de gametas ou embriões com parentesco até o 4º (quarto) grau, desde que não incorra em consanguinidade, e, por fim, a destinação dos embriões após divórcio, separação, dissolução da união estável e falecimento.
Sob o ângulo da relação entre clínicas, centros, serviços, médicos e pacientes envolvidos na aplicação e uso das técnicas de reprodução assistida, visualizam-se os elementos caracterizadores de uma relação de consumo que atrai, por conseguinte, a incidência da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Cuida-se, por óbvio, de relação terapêutica na qual, além do diploma consumerista, incidem as normas éticas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina, em especial, úteis para fixação dos deveres imputados aos médicos envolvidos, eis que, nos termos do art. 14, § 4º da Lei Protetiva, a responsabilidade dos profissionais liberais é de natureza subjetiva.
Desse modo, à luz dos arts. 186 combinado com 927 do Código Civil, é indiscutível que a aferição da culpa é essencial para fins de configuração do dever de indenizar. Por outro lado, cabe destacar que o deslocamento da culpa subjetiva, calcada na análise do clássico tripé negligência, imprudência e imperícia, em viés psíquico, cede espaço, em especial em relação aos profissionais liberais, para a denominada “culpa normativa”, extraída do comportamento esperado pelos pacientes a partir dos vetores ditados pela boa e ética prática médica, notadamente em situações nas quais há normas deontológicas previstas.
Nesse cenário, em especial, as clínicas, centros ou serviços são responsáveis pelo “controle de doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e pelo descarte de material biológico humano dos pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida”.
Deve, ainda, manter registro permanente das “gestações e seus desfechos (dos abortamentos, dos nascimentos e das malformações de fetos ou recém-nascidos), provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões”; “exames laboratoriais a que são submetidos os pacientes, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças” (Resolução n. 2.320 do CFM).
Em relação, portanto, às clínicas, centros e serviços de reprodução humana assistida, ressalta-se que a responsabilização civil é de ordem objetiva, uma vez constatada a falha na prestação do serviço, independentemente de culpa. Cristaliza-se, ademais, a imputação de deveres específicos por meio da aludida resolução, além dos deveres atinentes à segurança, informação e diligência na prestação de tais serviços especializados.
Instigante reflexão, com profunda implicação no campo da responsabilidade civil, relaciona-se com a natureza da obrigação concernente ao procedimento da reprodução assistida – se de meios ou de resultado. A rigor, a complexidade que envolve tais técnicas permite a exigência da máxima diligência dirigida ao emprego adequado das técnicas e do esclarecimento necessário em todos as etapas que envolvem os ciclos artificiais da procriação.
Entretanto, a trajetória de mercantilização da reprodução artificial evidencia que o sonho de ter filhos foi capturado pela lógica do lucro, o que descortina práticas publicitárias que margeiam a ilicitude e mascara riscos que atingem especialmente mulheres na busca pela concretização do desejo maternal.
Esse cenário desperta e incentiva expectativas desarrazoadas, descompromissada com os dados estatísticos, facilmente frustráveis, o que impõe identificar, com base na informação prestada na relação médico-paciente, mas também nos anúncios publicitários, o enevoado limite entre a obrigação de diligência e a de resultado, mas, em especial, pela violação do dever de informação e falhas no consentimento livre e esclarecido.
Cabe sublinhar que o “mercado” da reprodução assistida envolve recursos financeiros significativos, como já acentuado, o que inclusive descortina o problema do acesso da população que não tem condições econômicas e que recorrem ao Poder Público ou aos planos privados de saúde.
Inclusive, após intensa controvérsia sobre o tema do custeio das despesas pelos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do tema repetitivo 1067, firmou tese no sentido de, salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear tratamento médico de fertilização in vitro.
A questão submetida ao julgamento residiu na definição em relação à obrigatoriedade ou não de cobertura, pelos planos de saúde, da técnica de fertilização in vitro. Para além da questão atuarial e jurídica, é fato que a decisão reforça a exclusão de um conjunto de pessoas que permanecerão com dificuldades e barreiras para a concretização do projeto parental, bem como não colocou em destaque a fundamentalidade do direito ao planejamento familiar.
Se tais questões se revelam extremamente intrincadas, em especial se considerando o forte aumento pela busca das técnicas procriativas artificiais no Brasil, não restam dúvidas que a frustração ou desistência do projeto parental despertam como situações potencialmente lesivas a direitos fundamentais dos envolvidos, não raras vezes, configurando como verdadeiras violações ao direito ao planejamento familiar hábeis a serem suas pretensões indenizadas em razão do injusto dano provocado.
A colisão de princípios constitucionais deflagra meticulosa atividade ponderativa trilhada pelo intérprete no itinerário que revele a máxima efetividade dos valores maiores em jogo.
Convém identificar duas hipóteses para melhor enquadrar a responsabilização civil dos atores em cena. Em primeiro lugar, eclode a questão do destino dos embriões excedentários após o divórcio, separação, dissolução da união estável ou morte de um ou ambos os parceiros.
A relevância do tema impõe que o destino seja acordado entre o casal ainda durante a preparação para a realizações dos ciclos de reprodução assistida e antes da geração dos embriões por meio de manifestação de vontade nos termos de consentimento livre e esclarecido, específicos e revogáveis, por excelência, e, preferencialmente, renovados a cada tentativa, inclusive com a expressa declaração do desejo de doação.
Vale salientar que a vigente Resolução n. 2.320/2022 estabelece que o consentimento livre e esclarecido é obrigatório e deve abranger todos os aspectos médicos, biológicos, jurídicos e éticos, de forma detalhada.¹⁰ Indispensável, portanto, que tais documentos sejam específicos sobre o destino dos embriões nas hipóteses mencionadas, sob pena de obtenção de um consentimento frágil a partir de uma informação inadequada e entremeada entre tantos outros dados e autorizações, conforme determina a própria resolução em seu item V.3.
Por consequência, qualquer falha na obtenção segura e pormenorizada do consentimento gera a responsabilidade da clínica ou centro de reprodução assistida, de forma objetiva, uma vez que configurado a violação ao dever de informação, inclusive, com sensíveis repercussões que, a depender do caso, devem ser levados em consideração no momento da quantificação do dano.
A revogabilidade do consentimento a qualquer tempo, desde que antes da implantação do embrião, provoca os mais calorosos debates em razão da possibilidade de desistência de um dos parceiros, geralmente causada em razão do divórcio ou da dissolução da união estável.
Tal situação é tributária da intrínseca anatomia dos atos de autonomia existencial, uma vez que o consentimento há de ser contemporâneo, bem como suas repercussões impactem na esfera de interesses de terceiros, cuja titularidade sequer se iniciara, eis que pessoa futura, ainda a ser concebida e eventualmente nascida com vida.
Em célebre caso, o ex-noivo processou a atriz colombiana Sofia Vergara para obter a custódia dos embriões e implantá-los em gestante substituta. A noticiada batalha judicial foi favorável à atriz, uma vez que a decisão determinou que os embriões apenas poderiam ser implantados mediante sua autorização.
No Brasil, já há decisões judiciais favoráveis ao descarte de embriões excedentes no processo de fertilização in vitro na hipótese de divórcio, ainda que um dos parceiros tenha previamente manifestado a vontade de o embrião ser custodiado pelo outro. A situação é ainda mais dramática quando um dos parceiros, por motivos médicos, não mais pode ter filhos biologicamente vinculados, a não ser por meio do uso do embrião crioconservado.
Discute-se se tal celeuma teria os rumos alterados neste caso, prevalecendo o direito ao planejamento familiar da mulher ou do homem impossibilitado de ter filhos biológicos por outros meios. A revogação do consentimento é um ato legítimo e compatível com a autodeterminação existencial, que exige sua atualidade para sua efetivação. Desse modo, é perfeitamente possível a desistência de um dos pares que haviam antes por meio de ciclos de fertilização in vitro gerado embriões excedentários e manifestado sua vontade para algum fim legalmente permitido.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já examinou caso no qual entendeu como legítima a posterior recusa do ex-parceiro em autorizar o uso dos embriões após o término do relacionamento, mas que as consequências patrimoniais negativas do ato deveriam ser indenizadas, condenando-o em arcar com metade do custo do tratamento, uma vez que à época consentiu com a realização do procedimento, ainda que verbalmente.
No caso em questão, uma mulher, após relacionamento extraconjugal mantido por aproximadamente 02 anos e planos de constituírem família, inclusive com futuros filhos, contratou os serviços de uma clínica de reprodução assistida, tendo suportado integralmente os custos. Após o término da relação, o parceiro revogou seu consentimento, impedindo o prosseguimento do tratamento.
Inconformada, a mulher ajuizou ação declaratória com pedido de danos materiais e morais, argumentando, ainda, o fato de ter 46 anos e que a gestação poderia acontecer até completar os 50 anos. Observa-se, portanto, que não houve dano moral ressarcível na hipótese de posterior desistência após o término da relação afetiva, havendo discussão apenas em relação aos eventuais danos patrimoniais devidamente comprovados.
Nessa linha, não parece razoável sequer invocar a possibilidade de indenização por perda de uma chance, uma vez que a revogação do consentimento antes da implantação no útero da mulher não configura ato ilícito e nem interrompe uma vantagem legitimamente esperada ou evita um prejuízo. A responsabilidade civil pela perda de uma chance descortina novas hipóteses fáticas deflagradoras do dever de indenizar por meio do reconhecimento de lesão injusta a um bem jurídico.
Diante disso, não parece razoável que a possibilidade de revogação de uma situação existencial desperte uma frustração de acordo com premissas probabilísticas de uma chance séria e real, uma vez que a desistência não configura – permita-se a insistência – ato ilícito. A taxa de sucesso das técnicas de reprodução assistida, como já afirmado, é reduzida e a criopreservação de embriões, independentemente do destino acordado entre o casal, não gera legítima expectativa de concretização do projeto parental.
Vale gizar que a possibilidade do nascimento de um futuro filho por meio de técnicas de reprodução assistida não caracteriza uma chance séria e real e nem é possível comprovar que tal resultado poderia ser esperado, salvo se por falha no dever de informação da equipe médica ou erro de diagnóstico, o que altera o bem jurídico lesado e os fundamentos da responsabilização civil.
O pleito de indenização pelo insucesso da reprodução assistida já alcançou o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do AREsp. 178.254, um casal pleiteou a indenização por danos morais e materiais por imprudência e negligência do médico na condução do procedimento de reprodução assistida. Após 4 anos de tentativas sem êxito, o casal procurou outro médico que prescreveu o exame de cariotipagem, considerado de praxe em tais casos, no qual restou constatada uma anomalia em dois cromossomos.
A alegação de que a conduta médica negligente impactou na decisão do casal de continuar com as tentativas não logrou sucesso na Corte Superior, que manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que não houve omissão e os fundamentos do acórdão bastariam a justificar, encontrando óbice na súmula 7 do STJ.¹⁴
A reprodução humana assistida é tema que fascina, subverte com a ilusória imutabilidade da ordem natural e comprova a dessacralização da natureza. Não por outra razão, desafia, no campo da filiação, o estabelecimento da paternidade e da maternidade, passando em revista institutos centrais do direito das famílias e sucessório.
Entretanto, repousa nos domínios da responsabilidade civil os fronteiriços dilemas da utilidade e dos limites do remédio indenizatório, que reverbera um nítido caráter paliativo, uma vez que embora possível, nem sempre se mostra como o antídoto adequado diante da frustração para os impasses dos desejos parentais.
Mesmo com o progresso biotecnológico nem sempre conseguimos ser o timoneiro de nossas existências e nem sempre o recurso à responsabilidade civil servirá como instrumento satisfatório para compensar a violação ao projeto parental diante da “perda de uma chance” pela desistência de um dos envolvidos diante da revogação do consentimento ou a frustração em razão do descarte indevido ou falha do dever de informar a respeito da viabilidade de concretização do desejo de ter filhos, de alguma forma, biologicamente vinculados.
(*) Vitor Almeida é professor e coordenador Adjunto do Instituto de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).