Conflito entre cultura e legislação deixa mães indígenas sem auxílio
Em 2019, 1.922 meninas tiveram filhos antes dos 16 anos em Mato Grosso do Sul e 13,6% residiam em aldeias
Plantar, colher e vender na feira. As lembranças de infância da cacique Licinda Terena, 45 anos, frustram as expectativa iniciais que a colocam como espectadora dos pais e avós trabalhadores da roça. Mesmo criança, ela era parte da atividade coletiva necessária ao sustento de toda a aldeia Limão Verde, no município de Aquidauana, distante 139 quilômetros de Campo Grande, onde nasceu.
Para as mulheres indígenas, o compromisso com o coletivo não está associado apenas a germinação da terra, mas também vêm na forma da procriação. Assim como a atividade agrícola precoce, engravidar antes dos 16 anos, quando o biológico diz que o corpo está pronto para gerar, está entre as peculiaridades culturais do grupo e acaba sendo algo comum nas aldeias.
De acordo com a SES (Secretaria de Estado de Saúde), em 2019, das 1.922 mães que deram a luz com menos de 16 anos, 13,68% eram indígenas, portanto, 263 nascimentos. A maioria foi entre jovens de 16 anos, 40%. A menina mais nova tinha 11 anos residia no município de Amambai, distante 359 quilômetros da Capital. Na faixa dos 12 anos foram três nascimentos nas cidades de Coronel Sapucaia, Dourados e Japorã.
A população do Mato Grosso do Sul é de mais de 2,4 milhões de pessoas. Deste total, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 61 mil são indígenas. É uma das maiores concentrações do País.
Na vida da Licinda, a gravidez precoce, atestada por inúmeros antropólogos, se confirma. Ela teve a primeira filha aos 15 anos de idade. O que é cultural, no entanto, esbarra em obstáculos constitucionais que dificultam a vida da família indígena. “Eu era feirante e tive que trabalhar durante toda gravidez. Deu dois meses de vida e eu já tinha que voltar para feira, se não passava necessidade”, relembra.
Mesmo trabalhando desde cedo, mães e filhos indígenas não recebem auxílio-maternidade. Situação que os deixam em situação de mais vulnerabilidade em momento onde os custos são significativos. “A nossa cultura [terena] é de agricultor. Esse era o único meio que a gente tinha para sobreviver na época. Dependíamos disso relembra”.
Foi justamente a necessidade responsável por trazer Licinda e a família para a cidade. A fuga por melhores condições de vida não mudou muitos problemas. O dilema quanto à gravidez entre adolescentes indígenas sem qualquer tipo de auxílio financeiro acompanhou êxodo para cidade.
Cacique na Aldeia Urbana Água Bonita, na Capital, Licinda afirma que as adolescentes mães continuam sem qualquer tipo de auxílio, mesmo diante da proximidade com as instituições responsáveis. Até mesmo as indígenas maiores de idade, têm dificuldade em reconhecer a prática de artesanato, como vínculo trabalhista, para garantir o auxílio-maternidade. As que não se casam, recorrem a pensão paterna, garantida por lei, mas nem todas conseguem.
A atividade doméstica tampouco é garantia de auxílio. O bebê de adolescente indígena de 16 anos, que conversou com a reportagem do Campo Grande News, não tem nem dois meses e já precisa dividir a atenção da mãe com os sobrinhos pequenos e os cuidados com a casa da família.
A jovem vive com o marido, o irmão e a mãe. Todos trabalham o dia todo para garantir alguma renda, mas os esforços de terceiros, não a livraram de passar necessidade durante a gravidez. “Eu não pude comprar berço, por exemplo”, lamenta. Fralda e até mesmo dieta para garantir período de amamentação saudável também fazem falta.
A preocupação da jovem mãe com as tarefas diárias a prendem no presente e o olhar parece vago diante de questionamento sobre o futuro. Depois de longos minutos de silêncio, a reposta vem em poucas palavras. “Quero voltar a estudar”, revela. Há um ano ela deixou a escola, quando soube da gravidez não planejada.
Apesar de ser considerado um aspecto cultural, a cacique Licinda afirma que a gravidez na adolescência é motivo de preocupação na aldeia urbana. “Tivemos casos de meninas de 12 anos grávidas”. Para conscientizar as jovens, ela busca parcerias com as secretarias de saúde para falar sobre planejamento familiar e métodos contraceptivos.
Auxílio-maternidade – A concessão de auxílio-maternidade para as mães adolescentes indígenas pelo INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) enfrenta há anos queda de braço na Justiça, já que o regime geral de previdência fixa como segurado especial a pessoa maior de 16 anos. Quem estiver abaixo dessa idade, fica sem possibilidade de acesso ao salário-maternidade.
Decisão favorável ao benefício a uma indígena de 16 anos foi concedida pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em abril do ano passado. Considerando que as normas que regem a concessão de um benefício não podem ser interpretadas de modo a prejudicar os beneficiários, o ministro Gilmar Mendes negou recurso extraordinário do INSS e manteve salário-maternidade da jovem.
Em novembro do ano passado, decisão do Tribunal de Justiça do Pará determinou a concessão de salário maternidade às mulheres indígenas com menos de 16 anos. Em janeiro deste ano, o MPF (Ministério Público Federal) do estado do norte do País recorreu, pedindo que a decisão "tivesse efeitos em todos os Estados que compõe a República Federativa do Brasil".
No pedido, a procuradoria lembra que características culturais e sociais do povo indígena levam as mulheres adolescentes a trabalhar em regime de economia familiar e ter filhos, admitindo que a vida sexual de jovens se inicie logo após a menarca. “Logo, tratando-se de mulheres indígenas, normas que regulamentam concessão de salário- maternidade devem ser interpretadas de acordo com os costumes e tradições indígenas”.
A Constituição garante o reconhecimento dos costumes, línguas, crenças e tradições das comunidades indígenas. Tais disposições constitucionais estão em harmonia com Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que prevê normas para respeito e preservação das diferenças culturais e sociais dos povos indígenas.