Grávidas de baixa renda são maiores vítimas de erros médicos
Todas as situações são em unidades hospitalares que atenderam exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde
Mais comum do que parece são os casos de violência obstétrica e supostos erros médicos durante o parto. Casos de gestantes que morreram ou os bebês, infelizmente, são muitos no Judiciário de Mato Grosso do Sul e para dar visibilidade a essas vítimas, além de sensibilizar sobre, o Campo Grande News selecionou alguns casos ainda em andamento e que envolvem esse tipo de sofrimento.
Os nomes dos envolvidos serão mantidos em sigilo porque há recém-nascidos ou crianças. Vale destacar que todas as situações são em unidades hospitalares que atenderam as vítimas exclusivamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde): Santa Casa, Maternidade Cândido Mariano e Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian.
Uma das ações que pede indenização por danos morais e erro médico é de gestante que perdeu o filho no parto, depois de 41 semanas de gestação adequada e com acompanhamento pré-natal completo. Jovem mãe com apenas 21 anos chegou à sede da Santa Casa em 5 de abril de 2022 na expectativa de dar à luz ao primeiro filho.
Era à noite e ela já havia perdido o tampão (secreção gelatinosa que tem a função de proteger o útero durante a gestação) e sentia boa movimentação fetal em seu ventre e sem perda de sangue. A petição detalha que o diagnostico inicial do caso foi de “outras doenças e afecções especificadas complicando a gravidez, o parto e o puerpério”, classificado com caráter de urgência para internação.
A jovem passou a noite no hospital e no dia seguinte recebeu uma medicação para induzir o parto normal. Nesse momento ela ainda sentia o bebê e não tinha queixas mais sérias quanto a seu estado de saúde, situação que prosseguiu até às 16h do mesmo dia. Entretanto, em nenhum momento o corpo da gestante deu sinais de trabalho de parto.
Dois dias depois da internação, em 7 de abril, já pela manhã, ela relatou ao médico que não havia mais sentido o bebê se movimentar, pelo menos desde às 20h30 do dia anterior, havia tido sangramento vaginal e cólicas leves. Ultrassom foi realizado e acabou sendo constatado que o bebê estava morto.
“O feto já se encontrava sem batimento cardíaco, oligoamnio severo (volume de líquido amniótico abaixo do esperado) e óbito fetal”. Foi realizada uma cesárea para a remoção do bebê.
A Santa Casa apresentou contestação e chamou à responsabilidade o município de Campo Grande, já que a paciente fez todo pré-natal na rede pública. Alegou ainda que não pode pagar as custas processuais por estar com deficit. O pedido não foi analisado e o caso segue em trâmite. A mãe pede indenização de R$ 150 mil.
Na Maternidade Cândido Mariano, em janeiro de 2021, jovem de 26 anos foi dar à luz ao segundo filho e teve também que esperar dias até que ele nascesse, mas morto. Petição de danos morais relata que “durante os nove meses do pré-natal, realizou todos os exames solicitados pela médica que o acompanhou nesse período, não havendo qualquer intercorrência fora da normalidade, ou seja, tratava-se de uma gestação absolutamente normal, cujo feto vinha se desenvolvendo de forma saudável, exatamente como esperado”.
Em 24 de janeiro daquele ano foi pela primeira vez à maternidade devido dores de trabalho de parto. Lá, foi atendida inicialmente por uma enfermeira e depois pelo médico plantonista. Sem dilatação suficiente, ela foi encaminhada de volta para casa. Dois dias depois então, em 26 de janeiro, amanheceu novamente com muitas dores e com 3 cm de dilatação, foi internada na Cândido Mariano.
No mesmo dia, entre 7h30 e 10h, a bolsa estourou e “foi recomendado que fizesse exercício com bola e que tomasse banho quente, tudo no afã de aumentar a dilatação para propiciar um parto normal”. Às 20h, ainda sem que o bebê tivesse nascido, uma enfermeira perguntou se ela gostaria de fazer parto normal ou cesariana, ao que a mãe respondeu que gostaria da segunda opção.
A profissional foi procurar um médico e não voltou mais. Quando o médico apareceu, ela estava com 8 cm de dilatação, ele saiu da sala e uma enfermeira lhe deu um medicamento para induzir o parto normal. Tempo depois ela já estava com 10 cm de dilatação, mas nada do nascimento. O médico então foi tentar ouvir o coração do bebê e sem dizer nada, a mãe foi levada com urgência para a sala de cirurgia.
“Ao retirar a criança da barriga da mãe, às 22h02m (vide certidão de nascimento), o bebê não chorou e sequer deixaram a autora ver seu filho, sendo levado imediatamente à pediatria. Sequentemente a isso, já na sala de recuperação, a autora foi informada pelo pediatra, responsável pelo atendimento de seu filho, que seu bebê teve problema de parada cardíaca, falta de oxigênio, cordão umbilical enrolado no pescoço, bem como sofrimento fetal”.
A criança conseguiu ser reanimada, mas sobreviveu apenas até 5 de maio de 2021, e permaneceu internada em Unidade de Terapia Intensiva da maternidade desde o nascimento. Indignada pela criança apresentar tantos problemas de saúde, sendo que houve um desenvolvimento pré-natal normal, a mãe procurou o CRM/MS (Conselho Regional de Medicina), que abriu sindicância em março de 2021. Em julho do ano seguinte, resultado foi abertura de processo ético contra os médicos que a atenderam.
Vários erros foram identificados na postura de acompanhamento da gestante e do bebê “seja por imperícia, negligência ou imprudência, que culminaram com a morte do recém-nascido (...), após pouco mais que três meses de vida”.
A Maternidade Cândido Mariano requereu perícia no caso e gratuidade judicial. O perito já foi designado pela Justiça e o processo está na fase de questionamentos ao perito. O pedido é de indenização de R$ 900 mil.
Por fim, caso no Humap (Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian) é de mesmo teor: ação de indenização por danos morais por erro médico. Entretanto, nem mãe nem bebês morreram. A gestante ficou com uma gaze dentro do corpo, o que lhe comprometeu tempo e saúde para estar junto aos filhos recém-nascidos.
Grávida de gêmeos, a mulher entrou na unidade hospitalar em julho de 2021, quando deu à luz a gêmeos. “Por ter tido uma gestação sem complicações acreditou estar apta para o parto normal, o que não veio a ocorrer por indicação médica, vindo a mesma ser internada para procedimento cirúrgico (cesárea)”.
Foi aí que houve o problema. Ela ficou internada entre os dias 29 de julho e 4 de agosto e teve muito desconforto e dores, mas ninguém identificou que havia uma gaze dentro de si. Um dia depois da alta ela começou a sangrar e havia secreção escura e fétida. No dia seguinte o quadro permaneceu e ela procurou atendimento médico. Durante o exame, ela percebeu que a médica retirou uma compressa de gaze de dentro do canal vaginal e jogou no lixo, o que foi confirmado pela mesma.
A mulher, de 34 anos, passou mais dias fazendo exames e ficou em observação e “todo esse período que precisou ficar em observação, a parte autora se viu privada da presença de seus filhos recém-nascidos, sendo que, inclusive, para que pudesse amamentá-los, dependia de seus familiares para que os levassem até o hospital, expondo-os a todo risco existente neste ambiente”.
Por se tratar de um hospital da União, o Tribunal de Justiça rejeitou o caso, o encaminhando à esfera federal. A mãe pede indenização de R$ 30 mil.
Análise – a advogada especialista em Direito Médico, Giovanna Trad pondera que esses casos aparecem mais na rede pública ou porque os pacientes do SUS procuram mais a Justiça ou porque, de fato, tais casos de erros e negligência médica ocorrem em sua maioria nesse setor. A isso, se soma a infraestrutura e efetivamente, o acompanhamento da gestante.
“Na rede privada, em via de regra, o médico que faz o pré-natal é o mesmo médico do parto. Ele conhece todas as questões de saúde da gestante, consegue compreender os desejos e vontades dela, se ela tem alguma outra dificuldade, algum problema de base”, argumenta.
Enquanto isso, pelo SUS, as gestantes são atendidas pelos plantonistas, e as mulheres podem, no decorrer do parto, não desenvolverem condições de um parto normal e em algumas situações, não têm acesso a exames na hora.
“Só o fato de não ser acompanhada pelo mesmo médico já pesa, mas há ainda a demora maior no atendimento, porque os hospitais costumam estar mais cheios, há atrasos no acompanhamento do parto. Acontece muito do bebê não sobreviver porque o bebê entra em sofrimento e o médico não monitora adequadamente”, aponta.
A tudo isso, a advogada comenta ainda que muitas vezes nem é erro do médico, mas falha na cadeia de assistência. “Faltam informações no prontuário, troca de médicos entre um plantão e outro e o que chega não sabe o que aconteceu, por isso é importante apontar exatamente onde ocorreu a falha”, sinaliza.
A reportagem entrou em contato com todas as três instituições citadas neste material, mas não obteve retorno até o fechamento.