A desconsideração da personalidade jurídica
Ao fecharmos um contrato ou um negócio comercial, as maiores expectativas estão em que as obrigações ali acordadas sejam cumpridas de forma integral pelas partes, tanto a que está oferecendo seu serviço ou mercadoria, quanto a que está adquirindo o produto ou empregando sua mão de obra.
Todavia, não são raras as vezes em que essa pretensão é frustrada, pois a empresa, que figura como parte no contrato, acaba não cumprindo seu papel, de modo que ingressar na esfera judicial parece ser a única forma de receber o que lhe é devido.
Embora o judiciário consiga, em alguns casos, reconhecer o descumprimento negocial e consequentemente determinar o cumprimento da obrigação, em fase de execução é comum não se localizarem bens que sejam capazes de garantir a satisfação do crédito apurado.
Nesses casos, poderá ser invocado o instituto denominado Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, onde é possível ultrapassar a barreira da responsabilidade empresarial e estendê-la para seus sócios ou administradores, contudo, para que seja possível transpor essa barreira, é necessário observar se o caso em questão se enquadra nos requisitos que autorizam a instauração do referido incidente de desconsideração.
Ao buscarmos na legislação quais artigos são responsáveis por essa autorização, deparamo-nos com duas normas que trazem as bases desses direcionamentos, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
O pedido de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código Civil está descrito no artigo 50, chamada teoria maior, e recentemente teve sua redação alterada com a entrada em vigor da Lei de Liberdade Econômica, Lei n. 13.874/2019.
Em resumo, para que seja permitida a desconsideração baseada nessa norma, é preciso que haja, por parte da empresa, o desvio de finalidade da pessoa jurídica e a confusão patrimonial. Neste ponto, com a atualização trazida pela Lei de Liberdade Econômica, os parágrafos 1º e 2º do artigo 50 cuidaram de estabelecer o conceito de desvio de finalidade e de confusão patrimonial.
Já os parágrafos 3º a 5º esclarecem a ampliação da responsabilidade aos sócios e administradores, bem como limitam a aplicação do incidente em casos de grupo econômico sem a presença dos requisitos e descaracteriza o desvio de finalidade quando existe apenas expansão ou alteração da finalidade original da empresa.
Desse modo, é possível observar que para enquadrar o pedido de desconsideração pelo Código Civil é necessário que a empresa tenha cometido um desses dois atos descritos no artigo 50.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, como bem ensina o jurista e professor Sérgio Cavalieri Filho[1], é o instrumento legal de realização dos valores constitucionais de proteção e defesa dos consumidores, tais como a saúde, a segurança, a vulnerabilidade e outros mais.
A previsão do pedido de desconsideração no Código de Defesa do Consumidor está descrito no artigo 28, conhecida como teoria menor, e autoriza o pedido quando, em face do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Continua ainda em situações de falência, estado de insolvência e encerramento ou inatividade da empresa em casos de má administração.
Nota-se que no Código de Defesa do Consumidor, os requisitos são mais abrangentes e se enquadram em maiores possibilidades, diferente do que ocorre no Código Civil.
Existindo duas normas diferentes, como saber em qual delas devo basear meu pedido?
Ainda que em uma primeira leitura pareça que o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor seja a opção mais fácil e que dá ao credor maiores possibilidades, a legislação a ser aplicada, em regra, é a prevista no artigo 50 do Código Civil, sendo a norma consumerista aplicada nas situações em que o caso em questão seja baseado em relação de consumo.
Isso também se deve ao fato de que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não é a medida a ser aplicada em todos os casos ou como primeira alternativa. Sua aplicação deve ocorrer de forma excepcional, pois sempre estender a responsabilidade patrimonial aos sócios da empresa seria impedir qualquer direito de personalidade à pessoa jurídica, ou ainda, não incentivar a abertura e manutenção de empresas que são, em parte, as grandes responsáveis na geração de empregos.
Existem outras áreas do Direito que utilizam dessas normas para realizar o pedido de desconsideração em situações de buscas negativas de bens, como no Direito do Trabalho.
Sabe-se que as relações de trabalho são essenciais para a sociedade e que o pagamento das remunerações é fundamental na vida de todo trabalhador, pois é dele que todos tiram seu sustento. Em ações trabalhistas em que há condenação favorável ao trabalhador, mas posteriormente é verificada a inexistência ou insuficiência de bens que garantam o pagamento das condenações, a desconsideração da personalidade jurídica, quando autorizada, é instrumento essencial para se garantir a verba alimentar de direito do trabalhador.
Assim, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode ser, nos eventos autorizados por lei, a única alternativa de satisfação do crédito quando não localizados bens na pessoa jurídica empresarial.
[1] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. Ed. – São Paulo: Atlas, 2011, p. 10.
Jessica Eli Varella Anchieta. Advogada da Carteira Trabalhista na LPB Advocacia.