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Em Pauta

Do tecido da dor à tecelagem movida a água

Mário Sérgio Lorenzetto | 27/07/2018 08:39
Do tecido da dor à tecelagem movida a água

O mundo dominado pelo algodão.

Nossos ancestrais experimentaram peles e pelos de animais, cascas de árvore, grama trançada e várias fibras vegetais para se vestir, mas, no final, o algodão venceu. O gênero "Gossypium" que hoje, literalmente, fornece o tecido de nossas vidas, de camisas a cadarços, surgiu de forma independente no Velho e no Novo Mundo. Mas durante os primeiros 4 mil anos de história humana no Velho Mundo, o algodão era uma mercadoria valiosa associada à Índia.
Embora os têxteis de algodão da Índia fossem um item de comércio cobiçado no Oriente Médio desde a época do Império Romano, os europeus só descobririam o algodão indiano após Vasco da Gama ter aberto - a ferro e fogo - o caminho para o comércio marítimo com a Ásia em 1498. Mesmo assim, os portugueses estavam mais interessados em colchas de bordados intrincados de Bengala do que em tecido para roupas. Eles descobriram a importância do algodão, mas não souberam usufruir desse comércio que prometia ser explosivo. Holandeses e ingleses, pelo contrário, perceberam que para comprar especiarias na Ásia necessitariam de uma moeda incomum: tecidos de algodão indiano. E foram esses holandeses que enviaram tecidos indianos xadrez e tingidos com azul índigo para a África em troca de escravos a serem enviados para as Américas. O tecido indiano de algodão azul logo seria usado para vestir esses escravos. Passou a ser conhecido como "tecido da dor".

Do tecido da dor à tecelagem movida a água

O uso e abuso de algodão na Europa.

Os europeus, que durante séculos só vestiram linho e lã - com exceção dos ricos, que vestiam seda -, finalmente descobriram o algodão. O "chintz" leve e lavável com cores brilhantes e resistentes se tornou mania. A produção indiana desse chintz - tecido de algodão indiano com desenhos de flores - disparou. Mas a tecnologia de sua produção - plantar, fiar e tecer - era a mesma por séculos. Disparou simplesmente porque colocaram cada vez mais trabalhadores para plantar algodão e produzir tecidos. O algodão fiado em rocas simples em casas de aldeias era levado em caravanas de carros de boi para oficinas com centenas de teares manuais em cidades litorâneas e portos e dali, enviados para a Europa. Afora a boa qualidade do pano, o maior atrativo do tecido indiano eram suas cores vibrantes, padronagens e, principalmente, as tinturas vegetais que não desbotavam com as lavagens. Esse comércio tomou proporções alarmantes. Quase todo o ouro e prata que circulavam no mundo iam parar na Índia. Das estimadas 17 mil toneladas de prata tiradas das Américas pelos europeus no século XVI, cerca de 6 mil toneladas acabaram na Índia. No auge desse comércio, no começo do século XVIII, a Índia exportava anualmente mais de 27 milhões de metros de tecidos finos e rústicos. O controle dos têxteis pela Índia alarmou os tecelões britânicos de linho e lã.

Do tecido da dor à tecelagem movida a água

A moral religiosa é usada para combater o algodão indiano.

A arma moral já fora usada na época dos romanos. Aqueles que perdiam com a invasão da seda chinesa impregnaram Roma de um falso "horror" pelos tecidos diáfanos - de seda - que as damas estavam usando. Foi com essa lição que, séculos depois, alguns britânicos acharam que a devoção religiosa era uma boa razão para proibir a importação dos tecidos de algodão da Índia. Thomas Mun exortou os cristãos a não vestir tecidos de algodão fabricados por infiéis. Protestos e agitações de operários levantaram a Inglaterra. Em 1701, o governo foi coagido a promulgar a "Lei Calicó", uma proibição parcial da importação e uso de têxteis indianos. Mas os protestos continuaram. Um dos maiores centros de agitação era Spitafields, onde, além do algodão indiano, muitos huguenotes fugidos da perseguição dos protestantes na França haviam instalado teares para tecer seda. Em 1721, a Grã-Bretanha aprovou outra Lei Calicó banindo todos os tipos de têxteis de algodão. Isso serviu apenas para enriquecer alguns espertalhões que passaram a enfrentar o poder e contrabandear, em larga escala, os tecidos de algodão indiano. Como os salários dos ingleses eram seis vezes superiores aos salários dos indianos, o tecido europeu não conseguia competir com o indiano importado. A busca de uma tecnologia para reduzir a necessidade do trabalho iria mudar o mundo.

Do tecido da dor à tecelagem movida a água

Os "satânicos teares escuros" mudam o mundo para sempre.

Essa busca por uma nova tecnologia terminou quando ocorreu a inauguração de uma tecelagem de algodão movida a água em Cromford, em 1771. Começava a Revolução Industrial. A cidade de Cheshire tornou-se o símbolo da nova era industrial com seus "satânicos teares escuros". A capital comercial seria Manchester, a "primeira cidade industrial global", também chamada de "Algodonópolis". Foi lá que criaram um sistema industrial cujos tentáculos se espalhariam pelo globo.
Embora fossem necessários ainda muitos operários para trabalhar nas novas máquinas, a velocidade e o volume de produção eliminaram a vantagem da mão de obra barata de que a Índia desfrutava até então. Em apenas 14 anos - 1814 a 1828 -, as exportações de peças de algodão da Índia para a Grã-Bretanha tinham quase desaparecido. O inverso também se fez verdadeiro. A viagem de tecidos de algodão ingleses - sustentadas por uma política tarifária permissiva - para a Índia, aumentaram em mais de cinco vezes. Pela primeira vez na história, a Índia estava importando o que a massa de sua população vestia. Milhares de aldeões indianos envolvidos na produção de têxteis perderam seu ganha-pão. Milhares morreram de fome. Como William Bentick, o inglês que governava a Índia escreveu:"Os ossos dos tecelões de algodão deixam brancas as planícies da Índia". Essa é uma das muitas breves histórias da globalização. Só os acordos entre as nações podem debelar seus efeitos malévolos. Uma guerra comercial, como a desejada por mentes doentias, só encherá campos de ossos.

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