E Deus criou a literatura. Todos os caminhos levam à Bíblia
Os autores, ou melhor, compiladores que deram forma ao livro do Gênesis, há 2.700 anos, não se preocuparam em ocultar as contradições, que tomam um leitor atento desde o princípio. No Gênesis, há dois relatos consecutivos da criação. No primeiro, Elohim vai dando forma, ao longo de uma semana, ao universo. Por fim, no sexto dia, "criou o ser humano à imagem de Elohim: criou macho e fêmea". Logo depois, no segundo capítulo, a divindade passa a chamar-se Yahvé - Elohim. Essa divindade modela o homem com o pó da terra, o leva a um jardim, faz brotar depois as árvores e cria os animais do campo. Logo a seguir, vê o homem muito só, lhe tira uma costela para que apareça a mulher.
Nascimento dos heróis que conviviam com gigantes.
Outra passagem, algumas paginas depois, é desconcertante. Conta como os humanos se multiplicaram e tiveram filhas. "Os filhos de Elohim viram que eram belas e tomaram dentre elas algumas como esposas". Depois disso "os filhos de Elohim se juntaram com as filhas dos humanos e engendraram filhos com elas. Estes filhos são os heróis". Heróis que conviveram com gigantes, explicam logo a seguir. Sim, o Gênesis pode ser lido como uma grande obra literária, do mesmo modo que a Odisseia de Homero ou a Epopeia de Gilgamesh.
A arca construída por um homem de 600 anos de idade.
Quando Noé embarca em sua arca, Elohim lhe diz para levar um casal de cada espécie, mas Yahvé retifica a ordem, diz que dentre as espécies puras e as aves não deve ser apenas um casal e sim sete casais. O mesmo Yahvé, diz em outro momento, que a vida dos humanos não pode ultrapassar 120 anos - isso tem base científica - mas os personagens do Gênesis seguem vivendo, e tendo filhos, muito mais tempo: Noé tem 600 anos quando constrói a arca famosa. É uma tentação abordar essas contradições com animo jocoso, mas não faria justiça a um texto que surpreende e fascina.
Distintos nomes de uma só divindade?
Divindade ou divindades? Yahvé é um deus humanizado e próximo dos humanos, que caminha entre nós, que nos chama se não o vemos, que fecha a porta da arca de Noé com suas mãos, que se arrepende de suas decisões e é capaz de mostrar-se colérico. Elohim é um deus mais misterioso e distante, que se manifesta em sonhos ou em uma voz interior. A exceção desse deus distanciado é quando luta fisicamente com Jacó até o amanhecer e não consegue vencê-lo. Além de Yahvé e Elohim, o Gênesis emprega as denominações El-Eliyón (o Altíssimo) ou El-Sadday, de origem menos clara, provavelmente se refere ao deus da tormenta ou da montanha. O Gênesis tenta unificar distintas visões de um mesmo deus?
A disputa em torno de Abraão.
Há muitos estudiosos que entendem que Yahvé e Elohim não eram a mesma divindade. O marco dessa diferença seria a ordem para Abraão matar seu próprio filho. É Elohim quem ordena a Abraão que lhe ofereça seu filho Isaac em sacrifício. Provavelmente a Yahvé, essa ordem pareça uma barbaridade pois manda um anjo deter Abraão quando já está com a faca na mão. Há outro momento de distinção: Yahvé é quem fecha a porta da arca de Noé, mas é Elohim quem detém a chuva. So depois da encrenca com Jacó, que Yahvé e Elohim desaparecem e a humanidade pode seguir adiante com um único Deus.
Dar um sentido místico, espiritual.
Alguns especialistas sustentam que as pessoas que reuniram antigos textos de Israel e da Judéia no Gênesis, em torno de 700 a.C., não pretendiam de nenhuma maneira que fossem entendidos literalmente, e sim dar um sentido - místico, transcendente, espiritual - ao povo judeu. A ideia era unir as várias tribos que habitavam Canaã, cada uma com seu deus protetor.