Com discurso de ódio que define quem vive ou morre, como sobreviver em 2020?
Antropóloga que estuda como se comportam os apoiadores mais radicais fala sobre os reflexos do discurso de ódio
“Parece um absurdo falar em luta de garantias constitucionais porque todo estudante de Direito quando vai estudar a constituição aprende que ela é a norma mais elevada dentro do ornamento jurídico e que o texto tem um grau de eficácia que supera qualquer outra norma”, diz Fabio Rogério Rombi da Silva, defensor público-geral de Mato Grosso do Sul. Bom, isso é aula teórica, acrescenta ele, ao afirmar que a prática vivida no dia a dia mostra que a Constituição demanda de uma luta. “Porque não é natural que esses direitos sejam respeitados, infelizmente”, completa.
Para piorar esse cenário, de modo assustador, a intolerância e o discurso de ódio têm ganhado espaço, e questões sociais que já deveriam ter sido superadas há muito tempo, não entram na mente de algumas pessoas que dizem respeitar o outro como ser humano.
Em razão disso e dos absurdos presenciados no dia a dia contrários aos direitos da população, a Defensoria Pública iniciou nesta quinta-feira (5) o evento “diálogos interdisciplinares sobre Direitos Humanos” que encerra hoje (6). Dois dias de palestras com pesquisadores e especialistas em temas relacionados aos direitos de grupos minoritários, como mulheres, indígenas, pessoas refugiadas, negras, lgbtqi+, além de aquelas em situação de trabalho análogo à escravidão.
Quem abriu o ciclo de conversas foi a doutora e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Isabella Kalil, autora de pesquisas sobre manifestações políticas no espaço público, gênero e conservadorismo.
Com o tema “Estado de Direito e Estado Mínimo: Os reflexos do crescimento de condutas de ódio e a luta pelas garantias constitucionais”, Isabella mostrou como uma série de posturas, também nomeada como discurso de ódio, vai se materializando em ações muito concretas, que vão desde projetos de lei que atropelam os direitos humanos, até como a polícia faz uma abordagem. “A consequência disso é que o discurso define quem vive e quem morre”.
O caso de Paraisópolis (SP), onde nove jovens foram mortos e 12 ficaram feridos, durante dispersão feita pela Polícia Militar, é um exemplo, diz a pesquisadora. “De tanto a gente entrar na criminalização da pobreza, na criminalização do funk, da favela e das periferias, a gente escuta pessoas comuns, que são relativamente boas dizendo, que a polícia matou pouco ou que mais um CPF foi cancelado”.
Embora falem por aí que é apenas um grupo “muito pequeno” levantando bandeira e discursos que violam os direitos, Isabella explica que a reflexão permanece importante. “O problema é que esses grupos estão se tornando cada vez mais fortes e a sociedade está alargando a tolerância para algo que é intolerável”.
Nunca se falou tanto em direitos humanos nos últimos tempos, no contexto de ver as desigualdades que a sociedade produz e querer militar contra elas. Mas, Isabella esclarece que o discurso de ódio não é novidade. Ela explica as origens com base em aspectos do passado bastante reais no presente, como a escravidão e os regimes autoritários.
“Como se chegou aos discursos de ódio? Essa é a principal pergunta. Realmente eles apareceram nos últimos anos com força e hoje é um dos principais desafios da justiça brasileira. E ainda existe um comportamento baseado na escravidão e na desumanização. A sociedade carrega um legado escravocrata e a democracia é muito recente. Viver em regimes autoritários, infelizmente, ainda é muito familiar no País”, pontua.
Além disso, os discursos geram uma nação seletiva de justiça. “A sociedade se divide em geração de bem, que é merecedora de direitos e garantias, e existe uma segunda classe que não é merecedora, de não cidadãos”, o que preocupa, e muito, diz a pesquisadora. “A ideia que o discurso de ódio é novo não é verdadeira. Novo é como ele passou a ser tolerável e está se tornando uma política de estado, um paradigma de governo”.
Com discursos de ódio cada vez mais organizados e posturas virando política, muitas vezes as pessoas se veem distantes da justiça e dos seus direitos. Na visão de Isabella, sobreviver ao discurso é não fugir da briga, muito menos entrar na batalha com armas, e sim com diálogo e educação.
“Como sobreviver? Acho que a primeira questão é identificar isso que estamos chamando de discurso de ódio. Acho que temos que ter uma postura muito mais firme como sociedade para dizer que isso tudo não é tolerável. Por exemplo, em questões como a homofobia, que é crime, não podemos dizer que é uma brincadeira ou que isso é polêmico. Isso é crime, não podemos tolerar esse discurso”.
Por outro lado, é necessário educar e informar. “Acho que tem que ter um processo de educação ainda quando criança. Temos que impor esses limites, eles não podem vir do Estado ou da Constituição, esses limites precisam ser construídos socialmente e precisamos desenvolver diálogos para que a sociedade compreenda os seus direitos”, conclui.
Programação - As palestras continuam nesta sexta-feira (6). A participação é gratuita e aberta à todas as pessoas. O evento é na Escola Superior da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul que fica na Rua Raul Pires Barbosa, 1519, Chácara Cachoeira, em Campo Grande. Confira a programação e palestrantes clicando no link.
Curta o Lado B no Facebook e Instagram.