Dois anos depois da morte, saudade fala pelo pai que perdeu filho para depressão
"Meu filho era maravilhoso. De repente ele ficou... Eu não percebia direito. Escondi ele da família, dos amigos, esse foi meu erro".
Seu Luís abre a porta do apartamento onde até hoje um dos cômodos se mantém intacto, como quem espera que o dono chegue. No quarto de Rafael Zarza Ribas, estão os mil cartões de visita que ele havia feito e que chegaram depois de sua morte. O armário ainda guarda as camisas e pertences do menino advogado.
Na tarde de um domingo de abril de 2015, Rafael saiu de casa dizendo que iria ao Belmar Fidalgo. O advogado entrou no Bahamas Apart Hotel e o desfecho foi uma queda de 27 andares. Nessa quinta-feira, a primeira coisa que o pai fez foi apresentar o filho pelas fotografias, de uma viagem em família e da formatura dele em Direito, na qual o bacharel foi o orador.
"Eu quero falar mais da sanidade dele", pede o corretor de imóveis Luis Ribas, de 60 anos. No entanto, é ele mesmo quem conduz a narrativa que traz à tona a dor e a culpa que se instauram nas famílias que perdem filhos no suicídio. Como parte da superação que Luis espera alcançar um dia, ele se justifica dizendo que precisa falar como uma alerta para outros pais.
Rafael foi o primeiro dos três filhos de Luis e Dora. Nasceu, se criou e foi sepultado em Jardim, interior de Mato Grosso do Sul. Veio da cidade pequena para a capital em meados dos anos 2000 para estudar e se formou em Direito na turma de 2009.
"Ele era afoito. Queria vencer logo na vida e ele seria, possivelmente, deputado estadual", imagina o pai. Rafael tinha envolvimento político, ajudou na criação da Associação dos Jovens Empreendedores e também na Associação dos Novos Advogados.
As doenças que lhe afetaram a saúde mental começaram a se manifestar três anos antes da morte. O pai conta que percebeu por dois episódios em que Rafael pegou um carro e em plena Afonso Pena andou na contra-mão.
Nas primeiras consultas com especialistas, o advogado não aceitou nem a doença e nem o diagnóstico. "Ele brigava comigo. Era depressão, bipolaridade e depois que ele morreu, fecharam também esquizofrenia", explica o pai.
Rafael foi medicado e chegou a seguir as orientações, mas segundo conta o pai, largou os remédios. "Foi quando veio forte e ele não... A gente não sabe trabalhar isso. A gente não é psiquiatra. Ninguém de nós sabia que estava assim, tão agudo. No dia ele disse, por exemplo, que tinha sonhado umas coisas mal... E a gente levou na brincadeira. As pessoas dão sinais e a gente acha que é brincadeira", descreve.
No início do tratamento, Rafael chegou a ser internado. Lembrança que vem à mente como um pesadelo ao pai. "Foram quatro dias na Clínica Carandá que ele não saiu do quarto. Ele se sentia envergonhado. Eu e a mãe dele ficamos lá direto com ele. Por quê? Porque todo mundo achava ele um gigante e então ele era internado?", recorda.
Quando o assunto vinha à tona, Rafael desviava ao máximo. Dizia apenas que tinha sido uma "estada" e que ele já tinha sarado. Nos últimos meses, o advogado pediu ao pai para se internar novamente. "Ele me pediu e o erro foi meu, de não internar. Eu não quis. Imagina você internar um filho que você pensa que vai ser deputado, que vai casar, que vai ter filhos?" A angústia toma conta dos olhos e do peito de Luis.
A rotina em casa, segundo o conta, também foi mudada. O filho queria dormir no sofá de uma das salas, que dá para uma sacada, e, zelando por ele, durante dois meses, o pai dormiu ali, junto, numa rede.
À época, o pai relata ter ouvido do filho também o pedido para que a família voltasse a Jardim, porque ele queria ficar perto da avó. "Ele falava: pai, vamos embora para Jardim? E eu falava que aqui tinha mais recursos. Me arrependo de não ter ido. Lá eu podia estar colado nele", lamenta.
"E ele foi embora com apenas 29 anos... Por ele pensar em projetos grandes, eu pensava também, sabe? Não achava que ele tinha um distúrbio. Faltou dialogar, faltou conversar. Eu não podia deixar ele sozinho, ele sair sozinho", explica o pai.
A notícia daquele domingo chegou primeiro em Jardim. Porque um dos funcionários do hotel era da mesma cidade da família. "Ele ligou para um primo da minha mulher, que ligou para o irmão dela, que falou com o meu irmão, que foi quem veio trazer a notícia. Quando ele falou: 'caiu do prédio'... Eu já sabia, sabe? Não fui lá ver e doei todos os órgãos dele", fala.
Os últimos dois anos não trouxeram o consolo, que pode ser que nunca venha. Pelas ruas, volta e meia seu Luis se pega questionando. "Quando vejo esses jovens na rua, nas drogas, eu pergunto: 'por que Deus foi levar o Rafael? Foi deixar ele fazer essa loucura? Porque é uma loucura, de 28 anos... Não desmerecendo quem está na rua, mas eu faço essa pergunta", diz.
Dia desses, o corretor se pegou indo até o hotel. "Andando pela rua, eu vi um garoto transtornado. Ali eu vi o Rafael e ele me disse que tinha ido ver um quarto para morar no Bahamas. Eu fui lá avisar para não deixar este rapaz entrar, porque ele pode fazer igual", alerta.
"Perder um filho me deixou meio bobo. Quando vejo um cara de terno e gravata, da idade ele, eu quero abraçar a pessoa. Meu filho teve boa formação familiar, eu tinha condição de levá-lo para São Paulo, para os Estados Unidos, para onde fosse para pegar a cura dele. Mas você não acredita que um dia a pessoa está bem e no outro não. Meu filho não vai ser o primeiro, mas podemos ajudar outros filhos para não cometer isso. Meu filho me deixou muita dor, muita saudade que é difícil, é difícil passar e uma culpa muito grande, por não ter falado do assunto, mesmo que a ferida sangre, você tem que conversar".
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