Em 2020, cicatriz é parte da “volta por cima” que Chloé conseguiu dar
Neste ano, os “planos” de Chloé foram surrados pela realidade e ela quase ficou sem andar
Por muito tempo, Chloé Pinheiro morou em Campo Grande trabalhando feito maluca para consertar a vida financeira. Inclusive, ela também foi jornalista aqui do Campo Grande News. Quando se preparava profissionalmente para voltar a cidade que tanto amava, São Paulo, uma forte dor mudou sonhos. Mas 2020 foi além, e arrastou dela todos os planos sonhados.
Os amigos de longe e os que ficaram em MS mal souberam do que ela viveu nos últimos dois anos. Mas no Voz da Experiência de hoje ela narra como, apesar de difícil, vale a pena lutar para viver mais tempo nesse mundão.
"Em 2018, minha perna direita deixou de ser a mesma. Começou com uma dorzinha atrás da coxa, quando eu ainda morava em Campo Grande, fazia boxe, caminhava pelas ruas cobertas de poeira laranja, via araras e ia a pé comer espetinho. Sem convênio, empurrei com a barriga. A dor foi aumentando, e estourou bem quando resolvi voltar para São Paulo, depois de três anos consertando a vida financeira e me preparando profissionalmente. Foi aumentando até eu andar como se uma perna fosse mais curta que a outra, sem noção de altura. Até eu procurar o terceiro médico particular, que enfim pediu uma ressonância e aí descobrimos o que era: uma necrose na cabeça do fêmur.
É uma doença relativamente rara, nunca tinha ouvido falar, que causa literalmente a morte do osso. Isso acaba com a articulação do quadril, dá artrose e, em última instância, pode até impedir a pessoa de andar. Nem sempre se descobre porque ela acontece (meu caso) e os médicos dificilmente desconfiam que uma pessoa como eu, jovem, ativa, tenha um problema do tipo.
Nunca esqueço de quando abri o laudo da ressonância. Chorei largada na calçada suja da Cruzeiro do Sul, viajei chorando na linha azul, na Avenida Jabaquara, na farmácia do Santa Cruz. A única solução realmente definitiva seria colocar uma prótese no quadril, uma cirurgia muito cara e agressiva, que os médicos tentam postergar ao máximo porque tem que ficar trocando de tempos em tempos e existe o risco de ela sair do lugar, entre outras complicações. Sinto que estou 'jornalistando' o relato da minha vida, mas é difícil me expor assim, especialmente sabendo que tantos amigos e queridos da cidade vão descobrir tudo isso por esse texto.
Fato é que, fazendo a prótese, assumiria um risco e tanto, de viver com ela, trocar quando fosse necessário, até que não houvesse mais osso para sustentar a haste de titânio. Um médico portador do mesmo problema me falou: 'você precisa escolher se quer viver dez anos a mil ou mil anos a dez'. Pensei que preferiria viver dois mil anos a cinco, se possível. Assim, passei os últimos dois anos presa primeiro em muletas, depois numa bengala. Ainda estava casada, a gente tinha acabado de mudar para um sobrado cheio de escada na Saúde (ironias do destino), que se tornaram impossíveis de subir, precisamos ir para um apartamento e eu tive que fazer um convênio. Tudo isso com o dinheiro bem apertado de freelancer – um dia você está rico, no próximo falido. Além da grana em si, em casa não dava para fazer nada. Varrer, passar pano, tirar lixo, limpar banheiro, recolher o lixo… As coisinhas tão triviais foram virando aos poucos desafios doloridos, que precisavam ser cumpridos por outras pessoas. Ia no mercado de bengala ou pegava o metrô e poucas vezes me davam lugar. Deviam achar que a bengala era charme. Chorei mais. De raiva, em tantas filas, banheiros, parques, vendo as pessoas correndo, pulando, vivendo, tomando cerveja em pé num balcão.
Me perguntava porque eu, se eu tinha culpa de algo, se tinha algo mais de errado com meu corpo. Com os amigos tentava ao máximo simular a normalidade. No dia seguinte, sentia na carne o resultado. O coração começou a doer mais do que o quadril. Eu me sentia isolada na minha própria dor. Acho que quem vive com uma dor crônica ou uma doença duradoura como eu também se sente assim: não importa quanto carinho chega, parece que ninguém sabe o que você está sentindo de verdade. Tive saudades de coisas que eu nem fazia direito: pedalar por São Paulo, dançar, andar sem rumo, viver coisas novas. Ao mesmo tempo, não era vista como “deficiente”, afinal, andava, fazia exercícios, conseguia ficar de pé. Estava funcional, mas presa em um limbo de não ser mais a mesma e não ser ninguém novo.
Comecei a namorar a ideia da prótese em 2019. Como sou jornalista e trabalho com saúde, li muitos estudos, relatos, assisti vídeos, em busca do melhor tratamento para mim. Se fosse operar, seria nos melhores termos, pagando um médico particular, que operasse com os materiais e técnicas mais modernos. Ia custar caro, então seria um plano para o futuro, depois de pelo menos um ano economizando. Em maio, descobrimos que nosso cachorro estava com câncer na boca. O tumor cresceu do nada, foi retirado, depois virou metástase no pulmão, engoliu nosso ano. Foram sete meses vendo-o sofrer e outros tantos chorando sua morte, que aconteceu em dezembro.
Depois do ano novo, bati o martelo. Escolhi operar com um dos sete médicos que visitei, um jovem prodígio do Einstein, que fazia a cirurgia de outro jeito, sem cortar músculos, reduzindo o risco de sequelas e dores no pós-operatório. Em janeiro de 2020, passei com ele e recebi o orçamento, uma grana absurda. A única vez que vi tanto dinheiro na vida não era meu. Pelo menos o resto (prótese, diária no hospital, material cirúrgico) o convênio ia pagar. Fiz as contas e, apertando bem o cinto e parcelando em muitas vezes no cheque que eu não tinha, talvez desse. Pra complicar, na minha ânsia de viver de novo, tinha fechado a minha primeira viagem internacional da vida para abril, ia de bengala mesmo, estava no meu limite. Seriam as primeiras férias em oito anos, o plano era viajar gastando o mínimo possível, voltar e operar.
Mas é 2020. O conceito de 'plano' foi surrado pela realidade, sempre ela. Ainda em janeiro, veio a separação. Necessária, mas acho que mais dolorida do que seria uma amputação da minha perna. Ainda dói, inclusive, como a síndrome do membro fantasma que acomete os amputados. Depois, chegou o coronavírus e, com ele, nada de viagem, de férias, de cirurgia.
Passei esse ano trabalhando como nunca, aprendendo a viver sozinha, cobrindo as notícias do vírus, novos trabalhos chegando, outros perdidos. Dinheiro entrando para a prótese pelo menos, que aconteceria 'quando tudo isso passasse' (outro conceito risível agora). Veio a insônia, o sofrimento, a tristeza. Coisas demais para escrever aqui. Coloquei a cirurgia de novo na gaveta até que os casos de Covid-19 diminuíram em São Paulo e marcamos a data: 19 de novembro. No meio disso, mais uma mudança, emprego novo, grandes responsabilidades, a pandemia voltando a preocupar, imprevistos e inseguranças. Será que eu realmente tenho cacife para bancar tudo isso sozinha? Duvidava muito, por isso me preparei para chegar lá nas melhores condições: pedalei quatro vezes por semana, parei de beber um mês antes, parei de fumar, comi bem, contratei fisioterapeuta para me atender em casa, escalei minha mãe e meus amigos para cuidarem de mim e da casa enquanto precisasse. Os medos surgiram de novo com força, mas agora junto de uma sensação de estar à beira de um abismo sedutor e desconhecido, com paraquedas. A decisão estava tomada, agora era só pular.
A cirurgia correu bem, e a recuperação mais uma vez me fez questionar tudo. Senti e sinto muita falta do vínculo do relacionamento, do colo, da parceria. Me arrependi de ter operado, porque sentia mais dor do que antes, porque me endividei, porque poderia morrer de trombose, deveria ter pensado melhor. Eu só estava limitada na bengala, não era tão ruim assim. Meu novo cachorro ficou doente, meu celular quebrou. Vivi à base de remédios por quase um mês, engolindo reclamações e aprendendo a pedir, a estar vulnerável, a soltar a mão e deixar meus “enfermeiros” tomarem as rédeas das coisas. Como é complicado assumir que não se está bem, como é difícil ser ajudada e não ajudar. Meu terapeuta, gentil o suficiente para me atender sem custos enquanto eu estivesse quebrada, repete com a sua calma oriental: confie em você. É de graça. Finalmente, a dor cedeu, e há duas semanas estou sendo pouco a pouco dominada pela gostosa ideia de que minha perna está voltando a ser minha e por uma gratidão pelo tanto que recebi das pessoas que eu amo. Um dia de cada vez. Nenhuma cura é uma escalada para cima, mas sim uma sucessão de altos e baixos.
Vou voltar para a mesa de cirurgia um dia, em vinte anos ou dez meses, quem sabe? Escolhi viver por hoje, escolhi deixar morrer tanta coisa. Precisamos, afinal, da morte, da dor, para abrir espaço para a vida. É difícil lembrar isso num ano de tantas mortes, tanta tristeza para centenas de milhares de famílias brasileiras. É ainda mais difícil se sentir confortável para celebrar partindo da minha posição privilegiada de quem pôde fazer tudo como quis, e não está até agora esperando na fila do SUS. Claro, nossas vitórias individuais devem ser celebradas, mas não dá para encerrar esse texto apenas feliz e ignorando o mundo ao nosso redor.
Por isso, se você chegou até aqui, gostaria de fazer um pedido. O Jackson, meu amigo e vizinho, está com o mesmo problema que eu, mas em estágio mais avançado, sofrendo dores terríveis que o impedem de trabalhar e sem convênio. Sua cirurgia não tem previsão de acontecer pela rede pública, então ele está com uma vaquinha virtual para viabilizar sua nova vida. Vamos ajudar?".
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