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Comportamento

Ensinar o óbvio é cansativo, mas não dá para descansar diante do racismo

Quilombolas comentam sobre os estigmas ainda enfrentados nas comunidades

Por Idaicy Solano | 20/11/2024 08:33
Rosa Franco, sentada em banco da sede da Comunidade Quilombola São João Batista (Foto: juliano Almeida)
Rosa Franco, sentada em banco da sede da Comunidade Quilombola São João Batista (Foto: juliano Almeida)

Mato Grosso do Sul possui 22 comunidades quilombolas, sendo duas delas localizadas em áreas urbanas de Campo Grande. Porém, mesmo com a proximidade e o avanço, ainda que a passos lentos, de políticas públicas, em pleno 2024 o racismo continua parecendo uma raiz da sociedade difícil de combater.

A tecnologia nos possibilitou o acesso à informação na palma das mãos, mas, para o autônomo José Evandro Anunciação, 30 anos, membro da Comunidade Quilombola São João Batista, ainda existe um estigma relacionado aos membros das comunidades quilombolas, principalmente devido à falta de conhecimento das pessoas.

“As pessoas não sabem o que pensar ainda, principalmente quando você fala que é quilombola. Quilombola vem de quilombo. Mas o que acontece lá no quilombo? Será que só tem gira? Eles relacionam muito com a religião. Se tem batuque, batuque é macumba, e macumba é coisa ruim. E, a partir daí, já vem uma série de preconceitos”, opina José.

Ele destaca que iniciativas como a da Lei 10.639, que inclui o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, devem ser cobradas, porque essa é uma maneira de ir eliminando o preconceito aos poucos, já que essa é uma luta que não será vencida da noite para o dia.

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Ninguém nasce odiando alguém. Para odiar, é preciso ser ensinado. Muitas vezes nos deparamos com situações e pensamos: "Não acredito que isso está acontecendo." Mas não podemos nos cansar. Não temos esse direito, porque, se nos cansarmos agora, todo o trabalho será perdido. Precisamos levantar a cabeça e trabalhar cada vez mais, com ainda mais força", diz José.

Pai de uma criança de cinco anos e aguardando o nascimento de mais um filho, José expressa que o futuro que deseja para os filhos é uma realidade mais justa e igualitária, onde eles possam competir de igual para igual, tanto no mercado de trabalho quanto no acesso ao conhecimento.

“A tecnologia vem nos ajudando muito. Hoje ela está na palma da mão, e conseguimos buscar informações, mas sonho com um futuro mais igualitário, onde eles possam concorrer de igual para igual. Sei que eles vão lutar com garra também, porque esse é um valor que vou ensinar: buscar sua história, se fortalecer nela e levar sua herança adiante”, afirma.

Membro da Comunidade Quilombola São João Batista, Rosana Franco, de 51 anos, afirma que o preconceito, acompanhado de olhares tortos e atitudes vexatórias, ainda é uma realidade comum enfrentada pelos membros do quilombo. Essas atitudes muitas vezes se manifestam por meio de palavras, olhares ou até mesmo pela falta de respeito à cultura deles.

“Entra ano, sai ano, são as mesmas discussões, as mesmas reclamações. As crianças vivenciam as mesmas realidades que eu vivenciei na minha infância. De uns anos para cá, começou a haver uma mudança positiva, mas, quando a gente observa de fato, percebe que quase as mesmas coisas continuam acontecendo”, expressa.

Atualmente coordenadora de políticas de promoção para a igualdade racial no município de Campo Grande, ela destaca que, dentro da comunidade, tem-se trabalhado muito a questão do pertencimento, da identidade e do enfrentamento ao racismo como resposta às atitudes discriminatórias.

“Para falar sobre racismo, temos que ter em mente três importantes palavras: respeito, amor e empatia. Precisamos ter esse respeito por todas as pessoas, porque, infelizmente, o preconceito está muito enraizado em todos nós, seja entre brancos, negros ou indígenas. Vivemos e crescemos em uma sociedade totalmente excludente”, pondera.

Para Rosana, a mudança tem suas raízes na educação, que começa dentro de casa, ensinando as crianças, que serão os adultos do futuro, a respeitar as diferenças étnicas, raciais, sociais e de gênero. Mesmo insistindo no mesmo tema há anos, ela expressa que essa é uma luta que levará até o túmulo.

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A gente não pode se cansar de ser humano. Nós acreditamos no ser humano e na mudança que ele pode realizar. Então, se for necessário falar uma, duas, três, quatro vezes ou mais, continuaremos falando. Afinal, só deixamos para descansar quando já não tivermos mais o corpo de carne. Agora, precisamos realmente combater. Ainda é necessário falar sobre o assunto, apontar e cutucar a ferida, mesmo para aquelas pessoas que não gostam de ouvir", defende Rosana.

Para a moradora da comunidade, Vânia Lúcia Batista Duarte, militante e subsecretária de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial, esse estigma vem sendo combatido aos poucos, e as escolas desempenham um papel fundamental nesse processo.

Ela comenta que, nos meses de outubro e novembro, a comunidade recebeu muitas crianças, que foram até lá para realizar trabalhos sobre a história e a cultura dos quilombos. Vânia expressa que o interesse em procurar as comunidades a deixou bastante feliz e que esse é o primeiro passo para desmistificar estereótipos sobre as vivências dentro dos quilombos.

“Algumas pessoas chegam aqui com estereótipos, acham que nós não podemos conhecer outras culturas. Estamos em 2024, e a cultura não é estática; ela muda. Mas é importante que haja interesse em saber da nossa história. Tem escolas e universidades visitando a comunidade para conhecer nossa história e entender como é nossa convivência”, destaca.

Para Vânia, esse estigma vem aos poucos sendo combatido, e as escolas têm um papel fundamental nisso (Foto: Paulo Francis)
Para Vânia, esse estigma vem aos poucos sendo combatido, e as escolas têm um papel fundamental nisso (Foto: Paulo Francis)

Para a jovem Vanessa Abadia dos Santos, de 23 anos, a mudança começa com a oportunidade de mostrar as potencialidades dentro dos quilombos. Uma das formas que ela encontrou para fazer isso foi por meio do projeto Niara, que promoveu, nos últimos meses, um curso de corte e costura na comunidade Tia Eva.

Vanessa destaca que participar do projeto a fez enxergar que pode ocupar qualquer lugar que desejar, além de ver nele uma oportunidade para os microempreendedores da comunidade expressarem sua própria arte.

“Quando vem um projeto assim para a comunidade, a gente fica muito feliz, porque reproduzimos nossa cultura, o que vivemos no nosso quilombo, e vemos nossa história se expandir.”

Para o diretor criativo e professor Eduardo Alves, de 33 anos, responsável por levar o projeto à comunidade, iniciativas como essa desempenham um papel fundamental na desconstrução de estigmas e preconceitos associados às comunidades quilombolas. Elas destacam suas potencialidades, talentos e riqueza cultural, ao fornecer um espaço para que possam mostrar suas tradições, arte, artesanato, culinária e música.

“Isso contribui para mudar a percepção negativa e estereotipada que muitas vezes é atribuída a essas comunidades, mostrando que elas são espaços de resiliência, inovação e colaboração. Além disso, ao promover a valorização da ancestralidade e das práticas culturais tradicionais, fortalecemos a identidade e a autoestima das comunidades quilombolas, incentivando o reconhecimento de seu legado cultural e histórico”, finaliza.

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