Para quem matou para salvar filha e hoje paga por isso, o 'cinema' acolhe
O Lado B acompanhou uma tarde de exibição de filmes na unidade de regime semiaberto de Campo Grande
Para quem vive com a liberdade reduzida, ou até mesmo privada dela, sentir-se vista ou parte do mundo exterior às grades pode ser um desafio. Quando toda uma sociedade vira as costas para as detentas que cumprem pena no sistema carcerário, a "luz" no fim do túnel para essas mulheres chega na forma de projetos que visam sua ressocialização, educação e profissionalização. Cumprindo pena por tráfico de drogas, homicídios e diversos outros crimes, basta um olhar acolhedor da sociedade para iniciar um movimento entre as mulheres que sonham em se reestruturar e refazer suas vidas fora das grades.
Um desses projetos é o "Conversa com Cinema", idealizado pelo curso de Audiovisual da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), que por meio da arte leva acolhimento e reflexão através da exibição de filmes e curtas-metragens brasileiros dentro do Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto e Aberto de Campo Grande.
Para uma mulher de 36 anos, que terá sua identidade preservada para resguardar a filha menor de idade, a chegada de projetos como este dentro do sistema carcerário significa "ser vista novamente como parte da sociedade e sentir-se cada vez mais próxima da tão sonhada liberdade".
“A cada coisa que trazem aqui para dentro para nós, procuramos nos integrar para poder desenvolver mais a nossa cabeça, não ficar o tempo todo pensando ‘eu quero ir embora’. Realmente, queremos sair daqui, mas as atividades nos ajudam a arejar a cabeça e nos sentirmos mais livres”, declara a mulher.
Antes de ser detida, a mulher trabalhava como bombeira civil e relata ter vivido um relacionamento abusivo com o pai de sua filha, de 12 anos, que terminou com a morte do agressor pelas mãos dela. Na época, a filha tinha apenas cinco anos, e a mulher viu-se numa situação de ‘matar ou morrer’ durante uma briga feia do casal. “Era ele ou eu e minha filha”.
“[O relacionamento era] bem conturbado, bem abusivo. Ele me agredia muito, agredia a minha filha. Eram muitas agressões que eu sofria, não só dentro de casa, como fora também. Quando a gente saía era muito ciúme, era muita briga. Em qualquer lugar que a gente frequentava existiam brigas e ciúmes. Até que acabou na fatalidade, e hoje eu tô aqui”, relata a detenta.
Ela pegou pena de 13 anos e cumpriu três anos e cinco meses em regime fechado. Lá, ela se empenhou em estudar e trabalhar bastante para reduzir o tempo na prisão. Agora, faltando menos de um ano para terminar de cumprir a pena, conta os dias para sair do semiaberto, recuperar a liberdade e o tempo perdido com a filha, além de ajudar outras mulheres vítimas de violência doméstica.
Em liberdade, ela tem a pretensão de participar de rodas de conversa para oferecer às mulheres vítimas de violência doméstica a ajuda e o apoio que ela não teve. Ela quer se tornar exemplo para que outras vítimas não precisem passar por tudo o que ela passou.
“É muito difícil, e eu sei que tem muitas mulheres que passam por isso e têm medo de falar, porque eu mesma tive muito medo, e acho que é por isso que estou aqui, porque eu nunca tive coragem de fazer uma denúncia contra o meu marido, nunca tive coragem de falar para minha família o que realmente acontecia dentro da minha casa. E todo relacionamento abusivo sempre termina nisso, numa fatalidade”, declara a detenta.
“Ou era o caixão, ou era aqui.”
Para quem viu o mundo virar de cabeça para baixo após cair no vício das drogas e no tráfico, e acabou encarcerada por isso, o projeto acaba sendo sinônimo de esperança por dias melhores, após sentir o peso de viver um verdadeiro “inferno”.
“Eu tô passando uma experiência que ou era caixão ou era aqui. Deus optou por ficar aqui. Bem melhor eu estar aqui do que estar morta, porque o mundo do tráfico das drogas só te leva a isso, ou a morte ou a cadeia”. O relato é de Edria Regina Rodrigues, 50 anos.
Ela relata que trabalhava em um pet shop, até começar a usar drogas e traficar, para conseguir bancar o vício. Cumprindo a pena de sete anos, momentos como o proporcionado pelo projeto significam para ela a oportunidade de esquecer o “mundo ruim” em que se meteu.
Ela detalha que alguns dos filmes retratam o que ela viveu na pele, e ajuda a refletir sobre o que levou ela a acabar presa, e os motivos pelos quais não quer mais seguir pelo mesmo caminho. “Isso aí dá um pouco de esperança de uma vida melhor. A gente já teve um mundo pesado, então a gente não quer mais voltar pra esse mundo, a gente vê a realidade pelos filmes, e é muito bom [para refletir]”.
“Nós somos importantes pra sociedade também”
Presa após ser pega com posse de drogas, a detenta Rosimeire Sampaio Dias, 53, relata que encontrou bastante força para cumprir sua pena, através dos projetos que a unidade penal oferece. Lá dentro, ela fez diversos cursos que a ajudaram a se sentir “menos vazia”, afinal, o motivo dela ter caído no vício foi a morte da mãe.
Quando a sociedade interfere positivamente na vida das detentas, trazendo projetos como a das sessões de cinema, é o momento em que ela diz se sentir importante e vista pelo mundo lá fora também.
“O importante é você viver errando e corrigir o seu erro. Quando começamos a participar, começamos a gostar e saber que nós somos importantes pra sociedade também. E que esses projetos sejam bem-vindos, [e tenham] mais e mais”, expressa.
Cinema com Conversa
O projeto é de responsabilidade da cineasta Geissiane Feitosa, 29 anos, e teve início ainda durante sua graduação no curso de Audiovisual da UFMS. Ela relata que foi estagiária do projeto de extensão da professora Daniela Siqueira, chamado “Cinema em Circulação”, que levava as exibições até as escolas de Campo Grande.
A partir dessa experiência, Geissiane criou o “Cinema com Conversa” como projeto de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Esse projeto consiste em exibir filmes de produções regionais e nacionais, priorizando histórias que promovam reflexão e identificação com as vivências reais das detentas.
“É uma forma de socialização. Acredito que elas se sintam mais integradas à sociedade, mesmo estando aqui dentro. Elas também se veem nos personagens dos filmes, que são histórias muito próximas de nós. Então, acho que isso muda bastante a visão de mundo delas. Tentamos escolher filmes que trazem experiências que elas já viveram ou que ainda vão viver, para que se reconheçam nos papéis”, comenta a cineasta.
A diretora da unidade penal, Cleide Santos do Nascimento, ressalta que iniciativas como essas tiram as internas do ócio e trazem novas possibilidades, fazendo com que elas enxerguem o mundo lá fora com novos olhos.
Apesar disso, ela revela que é muito custoso fazê-las entender que precisam dessas intervenções culturais, sociais e educacionais, e mantê-las nas atividades do início até o fim acaba se tornando um desafio, porque elas são resistentes a participar das atividades.
“É preciso insistir, é todo um processo, porque elas têm toda uma vida antes de estarem aqui, um contexto social no qual já estavam inseridas. Então há essa dificuldade delas em aceitarem essas atividades, por mais benéficas que sejam”, detalha.
Porém, com todo o trabalho de acolhimento oferecido, a diretora garante que conseguem resultados positivos, e a participação acaba sendo maior que a rejeição aos projetos. A cada 12 horas de atividades, como a do cinema, por exemplo, elas ganham um dia a menos de pena.
Outra iniciativa da unidade, para incentivar a educação, é a remição de pena por leitura. A cada uma unidade de livro lido, após apresentado um resumo sobre a obra, a detenta ganha redução de pena. Lá, as mulheres também participam de palestras, atividades com psicólogos e rodas de conversa.
Atualmente, existem 100 mulheres cumprindo prisão no regime semiaberto, e deste número, Cleide revela que 90% exercem atividades laborais remuneradas, tanto externamente quanto internamente. “Nós temos internas trabalhando em pet shop, no fórum, em atividades administrativas, em empresas de pós-obra e serviços gerais”, finaliza.
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