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Comportamento

Por que os colonizadores são 'heróis' e a escravidão em MS é silenciada?

Ainda hoje, as histórias sobre construção das cidades deixam de lado quem sustentou esse processo lá atrás

Por Aletheya Alves | 11/10/2024 07:34
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade


Inventário registrado em Paranaíba indica escravos como posse. (Foto: Arquivo/TJMS)
Inventário registrado em Paranaíba indica escravos como posse. (Foto: Arquivo/TJMS)

Nesta sexta-feira (11) é celebrada a criação de Mato Grosso do Sul, mas nossa história é muito mais antiga do que os 47 anos. E, para além das partes bonitas, a construção do Estado envolve discussões que por vezes são jogadas ao escanteio, como é o caso da escravidão.

Quem estuda sobre o tema sabe que, em geral, o passado escravocrata de MS é conhecido por poucos. Muito se fala sobre esse cenário no âmbito nacional, mas o que aconteceu especificamente por aqui? E como esse histórico afeta nossa sociedade até hoje?

Esse desconhecimento pode ser atribuído a várias razões. Em primeiro lugar, a educação formal muitas vezes não aborda a história da escravidão de maneira aprofundada, especialmente em contextos regionais. Além disso, a narrativa predominante sobre a fundação de cidades e estados tende a glorificar os colonizadores, omitindo as histórias de quem deu realmente deu sustentação a este processo de colonização, como os escravizados em Mato Grosso do Sul.  Outro fator é o silenciamento das memórias e vozes dessas pessoas ao longo do tempo, que se reflete na falta de representatividade nas discussões atuais", resume a mestre e professora de História, Edineia Silva Santos.

Somadas a esses pontos, há ainda outras questões como a preferência da sociedade por não confrontar traumas do passado e, consequentemente, a perpetuação de um “ciclo de desconhecimento”, como a professora destaca.

De uma forma ou de outra, essa negação generalizada também resulta em uma falta de acesso à fontes históricas.

“Ao ignorarmos essa parte da história, perdemos não apenas a conexão com o passado, mas também a oportunidade de reconhecer e valorizar a resistência e as contribuições dos escravizados na formação do nosso estado”, pontua Edineia.

Obra "Negros no Fundo do Porão", de Johann Moritz Rugendas, retrata trasporte de escravos. (Foto: Reprodução)
Obra "Negros no Fundo do Porão", de Johann Moritz Rugendas, retrata trasporte de escravos. (Foto: Reprodução)

Glorificações e apagamentos

A partir da fala de Edinéia sobre como os colonizadores costumam ser pensados isoladamente com uma glorificação, podemos observar histórias que ouvimos de ano em ano com as fundações das cidades. Quando alguém vai falar sobre o desenvolvimento, o costume é pensar em quem são os homens que vieram para Mato Grosso do Sul sem pensar no trabalho escravo que os acompanhava.

E, já que a ideia de hoje é pensar criticamente sobre essa construção, a professora Edinéia e a doutora Kátia Cristina Nascimento Figueira explicam sobre as dinâmicas do passado escravista do então sul de Mato Grosso.

“Entender a escravidão no sul da província de Mato Grosso requer uma leitura do processo de formação histórica do Novo Mundo, financiado pelo capitalismo mercantil, isto é, o braço escravizado deu sustentação aos planos econômicos da Coroa Portuguesa para atender as demandas da exploração”, descreve Edinéia.

Onde estavam os escravizados?

A partir de estudos feitos a partir do Arquivo Nacional, um grupo do Arquivo Público Estado de Mato Grosso do Sul pesquisou 14 municípios e, destes, foram encontrados registros relevantes em Nioaque, Corumbá, Miranda e Paranaíba (no então sul de Mato Grosso).

Kátia descreve esse mapeamento e identificação de fontes partiu de uma ação em 1988, o “Guia Brasileiro da fontes para a História da África, da Escravidão Negra e do Negro na Sociedade Atual”.

“A ideia era identificar onde estavam as fontes sobre a temática, suas condições de conservação e acesso, pois esse era um trabalho solitário de pesquisadores, mas não havia um documento identificador dessas fontes. Portanto, a partir disso, o Arquivo Nacional iria produzir um guia brasileiro para quem tivesse interesse”, explica a doutora.

Em MS, quem integrou o grupo percorreu várias cidades antigas do Estado. Kátia integrou um grupo ao lado de Lira Dequech, Henrique Spengler, Darlene Batista Antônio e, em um segundo momento, Sílvia Helena Andrade de Brito, sob a coordenação de Yara Penteado e Paulo Eduardo Cabral.

A pesquisa envolveu documentos como cartas de liberdade, escrituras de compra e venda, de dívida e obrigação, hipotecas, procurações e testamentos. “Toda essa documentação atesta intenso comércio no sul de Mato Grosso do que estava registrado nos livros de notas dos cartórios”.

Na prática, a dinâmica por aqui funcionava semelhantemente a outras regiões do País.

O escravo como mercadoria seguia a lógica de outras localidades do país. Havia intensificação em Paranaíba, talvez por conta da proximidade com Minas Gerais. Os documentos cartoriais aqui encontrados possuem as mesmas características das regiões cafeeiras de São Paulo, conforme aponta o prefácio de Paulo Cabral (1994) no livro Como se de ventre livre nascido fosse... O referido autor ainda pontua que apesar de a escravidão não se constituir como elemento central na economia do estado, a sua conservação permite inferir que na ordem social ela era a pilastra, nos serviços domésticos por conta do predomínio do gênero feminino e com os pequenos proprietários”.

História mais aprofundada

Conectada com a história nacional, as dinâmicas de escravidão na região que hoje é MS começou com o Tratado de Tordesilhas (aquele de 1494, em que as terras ‘descobertas’ dois anos antes seriam dividias entre Portugal e Espanha).

Então, para contextualizar, ela descreve que os espanhóis foram os primeiros a passar pelas terras de MT e MT no século XVI. Na época, a busca era por minerais preciosos, mas a colonização ficou de lado porque não encontraram ouro, dificuldade em avançar para o Leste devido à resistência indígena e por já terem descoberto prata na Bolívia e no Peru.

A presença de escravos já se dava nos séculos seguintes, quando a Coroa Portuguesa chegou ao Mato Grosso com as expedições de bandeirantes e monçoeiros. “Estima-se     que mais de 15.380 escravizados teriam entrado na capitania de Mato Grosso entre 1720 e 1772, oriundos da região norte e sul da Colônia, sendo que 70% deste total entraram no apogeu das descobertas do ouro e da implantação da estrutura político-administrativa e fiscal da Coroa Portuguesa”, explica Edinéia.

A exploração do ouro foi caindo e, com a crise da mineração, a capitania de MT passou a se reorganizar em novos núcleos urbanos, todos assentados no trabalho dos escravizados.

Mato Grosso reorganizou gradualmente a sua economia, substituindo a mineração de ouro pela agricultura e a criação de gado, gradualmente assumindo o protagonismo no mercado exportador a partir da introdução de produtos como couro, aguardente e açúcar, consolidado por meio da intensa exploração da mão de obra escravizada”.

Em resumo, nas palavras de Edinéia, a escravidão foi um elemento central na exploração econômica colonial também no sul de MT, ou seja, na região que hoje é MS. Mas, para entender isso, é preciso entender nosso estado conectado ao antigo.

Segundo a professora, eram os escravos que sustentavam a produção de ouro e a agricultura.

Construindo o “agro”

Regionalmente, durante as duas primeiras décadas do século XIX, a atividade econômica já estava baseada na agricultura de subsistência e na criação de gado em propriedades rurais pequenas. Diferente do que entendemos hoje pelo mundo do agro, a produção era para o abastecimento interno e “foi muito importante para a construção da história do universo rural brasileiro”.

Os escravizados, em geral, pertenciam a proprietários de pequenas posses, como explica Edinéia.

“Os senhores e a administração colonial e imperial associavam o negro à condição de escravizado, isto é, uma mercadoria presente em escrituras de compra e venda, escrituras de dívida e penhor, escrituras de transação doação e outros”.

Como pensar novos caminhos

Para a professora, a importância do tema só será destacada caso haja educação inclusiva e crítica. Uma estratégia possível seria que as escolas e universidades integrem a história da escravidão nos currículos não apenas com os fatos, mas “também as vozes dos escravizados e suas contribuições”.

“Oficinas e palestras com historiadores e especialistas podem enriquecer o conhecimento e fomentar discussões relevantes. Além disso, o uso de mídias sociais e plataformas digitais para disseminar informações e testemunhos sobre a escravidão pode alcançar um público mais amplo, especialmente os jovens”, destaca a professora Edinéia.

Exemplo disso é um vídeo construído pelos estudantes da Escola Estadual Joaquim Murtinho sobre os 450 anos de sofrimento dos escravizados desde o primeiro leilão em Portugal (confira clicando aqui).

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