Rei do Chamamé, Ailton se despediu da gaita, churrasco e do chimarrão
Sul-mato-grossense de coração, por 66 anos esse gaúcho compartilhou tradições, comida e muita boa música
Em Campo Grande, Ailton Missioneiro era pura festa. Sempre tinha uma "moda" para festejar, ou melhor, tocar. Durante 66 anos, respirou música e ela se apossou dele até o último instante. Não é à toa que ele recebeu carinhosamente o apelido de "Rei do Chamamé" pelo sul-mato-grossense. Era nesse estilo musical a maior paixão que, somada à gaita, churrasco e chimarrão, faziam sua "trindade" ficar completa. Mas, é claro, sem esquecer de um outro trio: a esposa Pertriz que tanto amava, os filhos Jaime e Osmar, seus dois "gauchinhos".
Porém, na última quinta-feira (11), Ailton foi obrigado a uma despedida abrupta. Mais uma vítima da covid-19, não tem mais gaita para tocar, churrasco para fazer, chimarrão para beber. Acabou a festa.
É difícil lembrar dele e falar sem se emocionar. Ele foi o meu espelho, meu ídolo eterno, e eu era seu maior fã".
Filho de seu Ailton, Jaime Serejo, 37 anos, por enquanto está vivendo a dor da família de ter perdido não só o patriarca, mas sua maior referência artística. Na arte da música e da comida. Porque seu pai era assim: não somente um cozinheiro de mão cheia, mas um instrumentista ímpar.
"Ele era um cozinheiro de mão cheia. Adorava uma boa comida campeira. E não tinha quem não gostasse do churrasco dele, era 'violento' na carne assada. Sem falar do seu outro dom: a música. Chamamezeiro nato, apaixonado mesmo, quase doente. Não tinha um dia sequer sem o som daquela gaita a ecoar pelas paredes", conta o filho, que cresceu presenciando a magia do pai.
Seu Ailton nasceu em Santo Ângelo (RS), mas passou a infância no interior de MS, no município de Amambai. Acabou terminando seus dias na Capital Morena.
Sua carreira teve início em muitos bailes, encontros em clubes e festas nas fazendas da época, levando a tradicional música gaúcha por todo o estado. Assim, fez seu nome – o que não é tão difícil de entender: tinha a simpatia no rosto com a alegria de uma sanfona.
Confira no vídeo-memória a seguir:
O Rei do Chamamé praticamente "fundou" o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) sul-mato-grossense ao som de sua gaita. Mas foi no Paraná que conheceu a esposa, dona Pertriz. Quando ele tocava, ela dançava. Em MS, foram parar no município de Ponta Porã, depois Rio Brilhante… até chegar à Campo Grande.
Antes disso, Ailton tinha o costume de viajar para a Capital por ser convidado à "estreiar" sua sanfona em diversos bailões na cidade. Com o tempo, conseguiu uma casinha e partiu com a família para viver na Cidade Morena.
"Meu pai era um fiel amante do seu instrumento. Em termos de música, tinha duas paixões: as tradicionalistas gaúchas e o estilo do chamamé correntino, aquele argentino-uruguaio. Mas também amava escutar xote e vanerão, rancheira… até mesmo uma valsa! Tudo isso se deve pelas suas raízes sulistas", esclarece Jaime.
"Seu Ailton sempre foi sistemático, tanto é que tinha a mesma rotina há anos. Acordava cedinho, tomava um bom banho, fazia sua oração diária e já ia para a cozinha preparar o seu chimarrão. E claro que colocava no 'radinho' as músicas que sempre gostou de ouvir", detalha.
"Cresci ouvindo tudo isso e mais. Meu pai tinha uma coleção de vinil bonita, toda organizada. Era meticuloso. Aqui em casa, nós já sabíamos que a gaita vinha primeiro de tudo, então nem tinha o porquê de disputarmos lugar nesse pódio", brinca o filho. "Mas é verdade! Sempre foi assim e sempre será, aonde quer que ele esteja".
Sem se recuperar da covid e ainda ter adquirido uma pneumonia devido à doença, seu Ailton ficou intubado por 14 dias no Hospital Regional de Campo Grande até falecer na madrugada da última quinta-feira (11). Rei do Chamamé era obeso, diabético e sofria de hipertensão, comorbidades que contribuiram para o agravamento do seu estado.
"Por causa dele, desde pequeno amava escutar meu 'velho' tocar seu instrumento. Aos 8 anos, me interessei pela gaita botoneira e resolvi eu mesmo aprender a tocar com sua ajuda. Já com 9 para 10 anos de idade, acompanhava ele em sua agenda de viagens. Com 14, fui viver profissionalmente de música, onde também viajei com outras bandas do estado tocando por aí", revela Jaime.
Ele me cobrava muito, era bravo e às vezes até no meio chucro, mas só porque queria que eu fosse um grande sanfoneiro. Graças a ele, acho que me tornei um pouquinho disso".
Devido a ter o Rei do Chamamé como "mestre", hoje Jaime faz parte da nova formação do Grupo Tradição. Mais recentemente, até gravou no estúdio improvisado em casa – com os "pitacos" de Ailton – uma nova música para a dupla Zezé Di Camargo & Luciano. "Aquilo foi uma honra para nós dois. Meu pai ficou todo orgulhoso de mim, mas eu já tinha esse sentimento por ele há muito tempo", admite.
Do último ano pra cá, Jaime afirma ter ficado mais perto do pai. "Até gravei ele várias vezes tocando o seu acordeon, mas também não fiquei só nisso, fui lá tocar junto também. As pessoas até se emocionavam. A gente olhava um para o outro e víamos o brilho no fundo dos olhos. Agora, sou eu quem choro com a falta dele por aqui", entristece.
Sonho de Jaime era poder gravar o seu primeiro trabalho solo junto ao pai – intenção que infelizmente não se concretizou. "O que mais tô sentindo nesse momeno é a quebra da nossa conexão musical. Quem tem o dom da música, sabe. Mais do que falar – e olha que ele gostava de contar uma boa história – era pela música que meu pai 'conversava' comigo e dizia tudo o que precisava ser dito. Mas ele deixou um legado musical muito grande e que eu, enquanto seu 'aprendiz', pretendo continuar", garante.
"Tudo que acontece com a gente tem a permissão de Deus. Então o que me conforta mesmo estando muito triste é saber que já havia chegado a sua hora de estar com o Pai Celestial. Tenho certeza que ele está sendo bem cuidado, e que o céu já reservou uma grande festa, com gaita, churrasco e chimarrão de uma vida inteira", finaliza.
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