“Você se perde”, diz quem chegou o fundo do poço com jogos on-line
Com cassino na palma da mão, jogadores anônimos falam como perderam quase tudo e como evitam apostar
O relógio de parede marca 19h17 na pequena sala localizada na região central de Campo Grande. Quatro homens estão sentados em cadeiras de plásticos organizadas em círculo e enquanto esperam mais companheiros chegarem, eles conversam aleatoriedades. É quinta-feira e mais uma reunião dos Jogadores Anônimos está prestes a começar, e por mais um dia eles evitaram o jogo, a aposta, a emoção que os levaram até o fundo do poço e depois à sala 1 da Rua Maracaju, 249.
No lugar que entra qualquer tipo de pessoa sem distinção de gênero, classe, religião e idade são compartilhadas experiências sobre o vício em jogos e apostas de qualquer natureza. A irmandade dos Jogadores Anônimos não é diferente dos Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos Anônimos. Os vícios sim, mas os 12 passos e o programa de recuperação seguem abordagem igual.
Após o tempo de espera, a reunião começa com a mesma formalidade de toda quinta-feira à noite. Apesar do J.A não ter cunho religioso, uma oração antecede o momento de troca de experiências entre os participantes. Eles se levantam, juntam as vozes e repetem as palavras: ‘Deus, concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para perceber a diferença’.
Na última quinta-feira, Rafael* ficou responsável por coordenar o encontro e durante boa parte do tempo explicou para a equipe de reportagem sobre a irmandade, que é a única a funcionar na região Centro-Oeste do país. De primeira, ele define o perfil de alguém que é viciado em jogo.
“Jogador compulsivo é aquele que em algum momento da sua vida saiu da faixa da normalidade jogando e quando pensou em parar já não conseguia mais porque algo era mais forte que ele. Assim, ele perdeu bens materiais, família e pode se encontrar numa situação difícil financeiramente”, fala.
Já o jogo, na visão do J.A, é caracterizado como “qualquer aposta ou lance, para si mesmo ou para os outros, seja por dinheiro ou não, por ínfima ou insignificante que seja, onde o resultado é incerto ou depende de sorte ou ‘habilidade’ constitui-se em jogo”.
Em algum momento, de formas diferentes, todos na sala extrapolaram o próprio limite com o jogo. Alguns estão há mais de uma década sem jogar, outros estão há meses, semanas, dias, não importa, todos evitam de maneira igual recaírem.
Só por hoje evitarei a 1ª aposta - Falar ou não nas reuniões do Jogadores Anônimos é uma escolha pessoal. No encontro da semana passada todos escolheram compartilhar, sendo o primeiro deles Henrique* que está há quase 13 anos* sem jogar.
“Hoje não joguei, não tive vontade, amanhã eu não sei. Quando cheguei aqui estava no fundo do poço, quase perdendo a família, a casa. [...] Não recuperei o dinheiro que perdi, mas já estou recuperando a minha dignidade, a minha autoestima, estou bem com minha família. Assim é um dia de cada vez”, declara.
O fim do relato é seguido por agradecimentos dos colegas. A dependência de Henrique* não veio através de jogos on-line, que nos últimos anos viraram febre e agora podem ser baixados direto do celular. O cassino deixou de ser um local, é virtual e está ao alcance de qualquer um a qualquer hora e lugar.
No dia 12 de janeiro, o Campo Grande News mostrou o apelo de uma mãe para que agiotas não emprestassem dinheiro à filha. “Tudo começou por causa do Jogo do Tigre. Esse jogo acabou com a vida dela”, escreveu a manicura nas redes sociais. A filha, de 32 anos, está grávida e devido ao jogo contraiu dívida superior a R$ 2O mil.
Na reunião, Rafael não deixa de citar que essa modalidade de jogo tem atraído cada vez mais jovens. “Ele tem um ou mais cassinos na mão à disposição dele, então a nossa preocupação é auxiliar pessoas que já chegaram na situação de fundo do poço, de não ter mais controle. Isso sem contar aqueles adolescentes que não chegaram até nós e jogam 24h por dia. Não almoçam, não fazem um exercício, não fazem nada, o negócio é jogar”, pontua.
Para ele, o crescimento e alcance desses jogos deixaram mais delicada a situação para aqueles que tratam esse tipo de vício. “Eu posso dizer que ficou mais fácil porque se eu tenho que me deslocar para uma casa para jogar é diferente de eu estar em casa, na minha cama, entrar no Facebook e chamar o cassino. Eu acredito que a facilidade está aí”, frisa.
Do grupo, Álvaro* teve experiência com jogos virtuais. Ele conta que não foi necessário perder uma quantia exorbitante para ser afetado pelo vício. “Se alguém perguntar quanto gastei nesse tipo de jogo vou dizer que gastei R$ 400 no máximo, mas isso não impediu que eu encontrasse todos os outros prejuízos possíveis da minha vida. Eu posso não ter gasto uma quantia volumosa, mas eu adoeci de tal forma que não tinha condições de lidar”, fala.
Na visão dele, os responsáveis por desenvolver jogos eletrônicos utilizam várias abordagens e todas elas atraem diferentes perfis de pessoas. Às vezes o jogo tem a ver com algo que você assiste, gosta, pode ser parecido com um hobby e assim, com um clique na tela, começa o que ele chama de ‘paraíso e inferno’.
“Hoje a variedade é tão grande porque você pode achar um jogo com os personagens da série que você gosta. A quantidade de coisas que as pessoas estão desenvolvendo para chamar a atenção é desde coisas educativas até perigosas. O jogo eletrônico, do celular, do computador e até da TV é extremamente sedutor porque é simples, fácil e acessível e se você tiver uma conta de cartão associada você se perde”, comenta.
Quando chegou ao J.A, Álvaro estava prestes a perder o emprego e o vínculo com a família. Álvaro já não jogava, mas foi na sala e durante as reuniões que encontrou o suporte que precisava para dia a dia dizer não ao vício. “Eu só não tinha uma orientação, uma direção e o J.A me ajudou a encontrar uma direção para a recuperação. Hoje estou bem com a minha família, as coisas aconteceram porque foquei em frequentar essa sala e entender como funcionava esse programa. Não é fácil, principalmente no começo”, afirma.
Parar também não é fácil e muitos dos jogadores esgotam todos os recursos financeiros antes de procurarem ajuda. Vender veículos, imóveis, recorrer a empréstimos de familiares, bancos e até formas ilícitas são caminhos que alguns deles percorreram.
Quando a fonte seca, alguns não chegam a atravessar a porta da sala número 1. Durante a reunião alguém relembra a história de uma pessoa que se suicidou após perder novamente todo o salário jogando. Matheus* é um que quase desistiu da própria vida.
Esse ‘quase’ ocorreu no curto período que tentou parar de jogar. Ele nunca usou drogas, mas expõe que a sensação de estar jogando deve ser a mesma que a de um adicto.
“Eu falei que não iria jogar mais, fui morar de novo no meu canto e foi um mês que fiquei sem jogar. Foi quando eu tive uma tentativa de suicídio e na época não sabia que era abstinência. Acabei que voltei pro jogo porque o jogo dá uma adrenalina. É muito estranho porque nunca usei droga, mas deve ser igual porque você sente aquele poder do momento, você não sente falta de ninguém, você se sente o ‘bam-bam-bam”, afirma.
Na sala onde deixaram de serem os ‘bam-bam-bam’, eles compartilham abertamente a própria vulnerabilidade diante do vício, as ‘falhas de caráter’ que os fizeram descobrir a compulsividade com o jogo e os avanços na recuperação contabilizados desde o dia que fizeram a última aposta.
É nesse ambiente que um membro compreende o problema do outro com o jogo, oferece orientação e suporte. Os Jogadores Anônimos é uma irmandade sem vínculo com partidos políticos, instituições de qualquer tipo e sem fins lucrativos.
Em Campo Grande, o J.A segue com a porta aberta todas as quintas-feiras, às 19h, na Rua Maracaju, 249, Centro.
* Nomes e datas foram alterados nesta reportagem para preservar a identidade e o direito ao anonimato dos membros do J.A
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