Coronavírus é mais um de tantos preconceitos com os entregadores
Enquanto quem fica de quarentena prefere pedir comida em casa, quem entrega aumenta exposição a risco de contágio
Os seis casos de coronavírus, confirmados até ontem na Capital, levaram muitas empresas a adotar o sistema de serviço home office para funcionários, e bares e restaurantes, o de delivery como estratégia para continuar atendendo os clientes. Por um lado, a segurança de quem pode realizar as atividades em casa coloca em risco quem faz entregas, e aumenta o contato pessoal com aqueles que pedem uma marmita para o almoço ou uma pizza para jantar em família.
Bruno, Leonardo e Samuel entregaram, juntos, mais de 100 marmitas durante o horário de almoço em Campo Grande, mas só conseguiram parar para fazer suas próprias refeições às três da tarde. Embaixo de uma sombra, na calçada de uma rua entre o Mc Donald’s da Avenida Mato Grosso, os restaurantes do Comper da Avenida Ceará e a praça de alimentação do Shopping Campo Grande, o ponto escolhido é estratégico.
Entre uma colherada e outra, eles discutem o assunto da vez: coronavírus. Mas essa não parece ser a maior preocupação dos meninos, que ficam com medo de serem bloqueados caso se identifiquem e preferem dar apenas o primeiro nome. Bruno trabalha apenas como entregador do iFood e segue uma rotina de carteira assinada: 8h de trabalho por dia desde que começou, há quatro meses. Ele só “termina” quando o horário de buscar a esposa no serviço se aproxima, às 18h.
Samuel continuou com a função que já fazia há 20 anos em São Paulo. Além de perceber que o medo aumentou após a confirmação da primeira morte no Brasil – na manhã de ontem (16) na cidade em que vivia – os maiores preconceitos são, segundo ele, pela própria profissão e por andar de moto. “Nos semáforos, os carros que ‘encostam’ na gente nunca estão errados. Os motoristas nos chamam de ‘vagabundos’ porque acham que todo entregador corre, e porque estamos em nossas motos e não em carros chiques como os deles”, desabafa.
Leonardo trabalha há oito meses como moto entregador de aplicativos de comida. Segundo ele, muitas outras coisas além da possibilidade de propagação do vírus, já afeta a entrada na casa das pessoas. “Às vezes não nos dão nem “bom dia”, e quando respondem, batem o portão na nossa cara logo em seguida. Não temos auxílio das plataformas, a única coisa que recebemos são avisos, de hora em hora, falando para tomarmos cuidado”.
Medidas de segurança, como utilizar álcool em gel e lavar as mãos várias vezes por dia, não conseguem ser feitas com a frequência que eles gostariam. Dependendo do local, os riscos aumentam, como em hospitais, que eles precisam entrar nas enfermarias e espaços de grande fluxo de pessoas. “Não temos tempo e nem condições de ficar passando álcool em gel nas mochilas a cada entrega. Primeiro porque nem os restaurantes, nem os aplicativos, fornecem. Segundo que não existe mais em Campo Grande. Não acho nem para minha família!”, relata Bruno.
Paulo César Lima, de 52 anos, também gostaria de limpar a mochila, que carrega os alimentos, mais vezes por dia. Ele limita a quantidade para economizar o álcool em gel, que não acha mais nas farmácias. “Alguns restaurantes fornecem o álcool e também para o funcionário da cozinha que entrega para nós; passam nas quatro mãos. O meu cuidado tem que ser dobrado porque trabalho até às 15h fazendo entregas no almoço e depois sigo das 18h à 00h em uma pizzaria”.
Diferente dos colegas de profissão, Adolfo Farias, de 50 anos, trabalha como moto entregador há apenas 20 dias. Para ele, as praças de alimentação dos shoppings são as que oferecem maior risco, tanto para funcionários como para clientes. “Nos restaurantes dos shoppings, a gente faz a coleta no balcão mesmo e passa pela praça de alimentação e pelas pessoas que estão sentadas. Isso é perigoso tanto para nós como para quem está sentado, comendo”.
A clientela anda tão apavorada que nessa terça-feira (17), servidores estaduais da Agesul (Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos) fizeram uma espécie de “barricada” na entrada do prédio, que fica no Parque dos Poderes, em Campo Grande. Várias cadeiras foram colocadas na recepção para obstruir a passagem de convidados ou entregadores. O pessoal teve que entregar marmita pela janela.