Com R$ 1,9 mil, campo-grandense vive experiência surreal em festival no deserto
Laryssa passou uma semana no Áfrikaburn, festival no meio do deserto onde ninguém usa dinheiro e tudo é feito com trocas
Aos 30 anos, Laryssa Escobar decidiu que teria um super presente em 2018. Saiu de Campo Grande com destino ao Áfrikaburn, festival na África do Sul, onde tudo vira fogo no fim do evento. Por 7 dias, uma cidade surge no meio do deserto, com arte e instalações em estilo nada convencional.
O evento é um versão do tradicional Burning Man, que acontece anualmente nos Estados Unidos e chega a reunir 80 mil pessoas em cada edição. Quem vem de fora, segundo Laryssa, se surpreende pela estrutura e dinâmica dentro do evento que tem como lema a colaboração.
No Áfrikaburn todas as atrações são organizadas pelos próprios visitantes e não há troca de moeda, só de apoio. "Ninguém paga nada lá dentro. O dinheiro por lá vale tanto quanto o papel higiênico. Ou seja, não se vende nada. Tudo é chamado de presente, o que você faz é um presente a todos".
O gasto é apenas para chegar lá e adquirir uma estrutura para sobreviver no deserto. "Gastei ao todo R$ 1,9 mil incluindo transporte, comida, barraca, camping (uma das áreas temáticas que o visitante pode escolher para ficar), ticket de entrada e fantasias", descreve.
Por lá, as pessoas colaboram com tudo. O visitante pode montar uma escultura gigante, realizar um show musical, servir a comida, oferecer bebida à vontade e entretenimento, que na maioria da vezes, ultrapassa todo tipo de criatividade.
"Cada área ou camping, que eles também chamam de 'camp' tem um tema. Um deles era naturalista, que dava banho nas pessoas de graça. Havia uma fila gigantesca de pessoas nuas para um processo industrial de banho, sem nenhum pudor".
O local é também um encontro de gerações e culturas. Assim como tem muitas famílias, há aqueles que resolvem curtir o festival sozinho passando por cada uma das áreas vivenciando experiências diversas. "Tem gente que vai para o local mais intimista, tem gente pelada tocando tambor ou pessoas que só querem balada 24 horas".
Porém, o deserto é hostil e Laryssa precisou entender rápido como sobreviver. "Quis curtir tudo e tive um pouco de dificuldade de entender que tudo ali estava disponível ao mesmo tempo. Sem contar os perrengues, você precisa estar preparada para as tempestades de areia, muito calor durante dia e frio à noite".
No dia a dia, além de curtir cada área, o visitante pode se voluntariar para exercer uma atividade dentro do festival. "Você não é obrigado, porém, ninguém fica sem fazer nada. É uma troca constante".
Laryssa conheceu quem se candidatou a fazer o café expresso para todos, assim como quem fez apresentações culturais ou decidiu servir um jantar completo para um grupo de pessoas. "Uma família judaica fez um jantar típico".
Lá dentro, há uma planilha onde é possível se candidatar para o trabalho. Isso também pode ser feito com antecedência pela internet. Fora da escala de trabalho, ainda tem café, chá e leite à vontade 24 horas por dia para o público.
Laryssa resolveu colaborar com sua arte. Fez um varal com 100 desenhos impressos no festival por uma visitante que tinha uma gráfica lá dentro. "Pessoas de todo canto do mundo pegaram os desenhos. Como pagamento, elas faziam questão de me dar um abraço".
Foram inúmeras experiências e desafios quando Laryssa decidiu conhecer o festival, mas não demorou muito para entender a real essência do evento. "É uma experiência antropológica incrível. As pessoas conversam com você com interesse, te olham nos olhos, mas não te reparam. Até quem anda com pouca ou nenhuma roupa também não é julgado por isso. É bacana ver gerações totalmente diferentes convivendo em um espaço utópico de amor e respeito ao próximo".
Tem coisa que também só se vê no festival, como por exemplo, uma borboleta gigante com luzes de LED que funciona como elevador e leva o público de graça às alturas. Ou alguém fantasiado de dinossauro e milho em pleno deserto, assim como todo tipo de festa, massagem, arte e debates sobre experimentações sexuais. "Tudo é feito como a imaginação manda. Tudo é uma auto expressão e você precisa se entregar para uma semana de desconstrução".
Na hora da limpeza, cada um precisa fazer a sua parte. O banheiro, por exemplo, precisa estar sempre limpo para o próximo. "Todo mundo arregaça as mangas e se ajuda. Não tem ninguém no banheiro limpando ou repondo papel higiênico. Tem que usar e já limpar".
No último dia do festival, todas as obras e monumentos são queimados. O público acompanha de perto, fotografa e contempla o fogo alto em silêncio. "O fogo representa a vivacidade e também nos traz de volta à vida, nos lembrando de apreciar cada momento por ele ser único e efêmero". No dia seguinte, as cinzas são varridas e todo mundo leva embora o lixo que gera.
Laryssa voltou da África emocionada. "Caiu minha ficha, chorei por dois dias. Foi difícil sair na rua e cumprimentar as pessoas de forma verdadeira como fazia no festival e receber um olhar de nojo".
Lá dentro, o sentimento era outro, não tinha insegurança, garante. "Medo de ser violentada por andar sozinha ou nua, lá era impensável. Aqui a gente precisa lidar com a crítica e julgamento por estar se auto expressando. Muita raiva é gerada pela simples falta de respeito ao próximo".
Detalhes que só reforçam à Laryssa em que pé está a humanidade. "Estamos doentes em decorrência do produto que nós mesmos criamos".
Mas a experiência de conviver em comunidade, rodeada de arte e respeito pelo menos por uma semana, ela acredita que continuará inesquecível e inspiradora. "Trouxe para casa a forma como as relações humanas acontecem. É muito mais puro, mais intenso e mais bonito."