Na rotina, remédio tomou o lugar da palavra e tudo agora vira doença
Em ambiente para refletir, projeto trouxe à tona Filosofia e análise sobre “Medicalização dos Afetos”.
Na sala de música do Sesc Cultura a reflexão através da Filosofia toma o lugar das notas do piano. Estudantes, profissionais e curiosos, todos parecem dispostos a entender sobre a temática anunciada que tanto fala do íntimo. Esse é o clima do Café Filosófico, projeto realizado pela produtora independete Árvore-ser, para aproximar a sociedade dos debates filosóficos sobre assuntos pertinentes.
Especialistas conduzem a conversa durante uma hora e meia. Na última edição, o psicólogo Tiago Ravanello foi convidado para falar sobre “Medicalização dos Afetos”. No começo, você divaga se procura uma fórmula pronta para compreender o tema, mas, Filosofia é isso, para refletir.
No consultório, Tiago topou falar ainda mais sobre o tema que carrega na essência uma preocupação: Será que todos os dessabores da vida precisam de medicamentos?
A pergunta surge após o número elevado de problemas que são transformados em “doenças”. Consequência disso é o uso constante de medicamentos como forma de amenizar as dores, sem abertura para que a pessoa reflita sobre o próprio sentimento e busque soluções sadias.
“De repente, a gente reduziu a atuação da Medicina em um processo de uso de medicamentos. Para o psicológico isso se tornou ainda mais danoso. Porque se transforma qualquer problema social em problema da Medicina e a Medicina em medicação, ou seja, nós temos feito a medicação da vida como um todo e temos vivido excessos nessas circunstâncias”, alerta Tiago.
Outro ponto levantado por Tiago são os diagnósticos, o que antes se buscava descobrir para que profissionais pudessem intervir clinicamente, hoje é usado como identidade no cotidiano. “Então as pessoas estão se auto diagnosticando como depressivas, ansiosas, obsessivas compulsivas, bipolares e fazendo disso um mercado de subjetivações”.
Isso tem levado as pessoas ao “mercado do amortecimento”, ou seja, ao perder algo de muito significativo na vida, as pessoas não passam pela dor, querem esquecer apenas. E essa dor é um processo que transforma. Viver uma perda, é poder se separar de algo, por exemplo, um relacionamento amoroso ou perda de um ente querido.
“Mas o que tem acontecido com essas pessoas? Ao contrário de oferecerem uma maneira delas se compreenderem, temos dado um produto (medicamento) para que acabe qualquer sensação de sofrimento, então a gente não tem vivido os processos de perda”.
Tiago explica que isso mostra como as pessoas estão cada vez menos preparadas para frustrações, motivo pelo qual as relações têm se tornado violentas. “As respostas são exclusão, violência e rechaço. Por isso, a gente não tem escutado muito bem o outro e não tem dialogado. Afinal, conversar com o outro é lidar muitas vezes com os nossos vazios e fracassos”.
O desafio, segundo Tiago, é nadar contra a corrente e mostrar que alguns afetos na vida não precisam de medicamentos, mas sim de palavras. “O campo das ciências ligadas aos atendimentos e as clínicas são marcados por dispersões, não é um campo de consensos. Então, temos diferentes clínicas, abordagens e teorias que rivalizam. Isso quer dizer que se por um lado há um avanço do modelo de clínica medicamentosa, por outro há, inclusive dentro da sala da psiquiatria, apostas no uso da palavra, que geralmente ocorrem dentro de uma clínica psicanalítica ou psicológica”.
Normalmente, sentar no divã e se dispor a falar não é tão confortável porque isso também é uma experiência dolorosa. “Construir uma narrativa com o próprio sofrimento é algo que demanda e exige muito da pessoa. Então algumas optam por saídas mais rápidas, com uso de medicação, justamente porque falar com o psicólogo leva ao enfrentamento trágico comigo mesmo, com a relação com o outro e com o que é necessário melhorar”.
Na visão do especialista, falar pode ser muito mais eficaz em determinados casos porque pode levar o paciente a revisitar os afetos, colocá-los em cena e se posicionar melhor diante dos próprios sentimentos. “Eu digo que fazer uma análise é reescrever a própria história com uma letra mais legível”.
Isso não quer dizer que a medicação deva ser excluída, explica o psicólogo. “O problema é transformar a medicação em uma saída dos problemas que me levam a uma clínica. Isso é algo que comporta um certo risco”.
Tiago trabalha a temática do afeto desde 2002, ainda na época da graduação. Levou o tema para o mestrado, doutorado e pós-doutorado. O pano de fundo das pesquisas sempre foi apontar como a clínica, através da palavra, permite uma análise mais ampla e eficaz. “A gente sofre da nossa história, os sintomas têm histórias, são construídos por discurso e linguagens, não são acidentes do nosso cérebro. Por isso a análise tem sua eficácia. E varrer tudo para debaixo do tapete pode ser, a princípio, uma atitude importante, mas, às vezes, a gente tropeça”, observa.
Café Filosófico – As edições acontecem uma vez por mês no Sesc Cultura e programação é divulgada pelas redes sociais.