Cheiro de rosquinha síria faz história de fila com netos se repetir por gerações
Receita da clichá não é segredo para família que acredita na maneira do preparado passada por quem já se foi
Fim de semana e os ponteiros do relógio alcançavam a marca de 15h quando o cheiro adocicado por especiarias invadia todo o condomínio que ficava na rua Maracaju há pelo menos 20 anos em Campo Grande. Eram as fornadas da rosquinha sírio-libanesa Clichá, que saíam direto da cozinha da avó Ecilda Anache.
Desesperados para conseguir abocanhar mais de uma, a parentada chegava a formar fila na porta da senhorinha, que ficava uma “arara” ao saber que não conseguiria guardar nenhuma para presentear as amigas.
Porém, a tradição do doce estrangeiro na verdade começou na família com a matriarca sírio-libanesa Afif Anache, sogra de Ecilda. Quem conta a história são os netos de Afif, Luiz Anache, 57, e Maria Amélia Paiva, 43.
Os dois se divertem ao lembrar do “dejavu” que foi ver os filhos formarem fila na frente da casa da avó Ecilda, já que na infância eles faziam o mesmo. “Nossa avó preparava a massa pela manhã. Sempre sábado ou domingo. Mas, só íamos descobrir o que ela estava aprontando quando aquele cheiro inconfundível tomava conta de toda a rua. Era a clichá”, descreve Luiz.
Antes de partir, com 64 anos, Afif conseguiu passar o que livro de receitas algum conseguiria: os macetes de preparar a verdadeira rosquinha apreciada pela família para Ecilda.
E não deu outra. Os anos se passaram e ali naquele emaranhado de casas onde residiam os Anache, Ecilda vez novamente a história se repetir. “Era impossível ser outra coisa. As vezes a gente estava brincando na rua ou até mesmo trancado dentro de casa e aquele cheiro vinha e deixava tudo perfumado. Maravilhoso”, diz a neta Marcella Anache, 28.
E outra vez lá iam os netos formarem filha na casa da avó, que mal conseguia tirar os doces da forma antes que as crianças invadissem o lugar para garantir a sua clichá. “Ela ficava uma arara com a gente. Dizia que queria guardar algumas para dar de presente, mas nunca conseguia”, diz Marcella ao se lembrar da avó.
Quem sempre presenciava a cena era Maria Fernanda Tomitao, 28, que morava no mesmo condomínio, mas não pertencia a família Anache. “Cresci ali com todos eles e meu Deus não tinha como resistir aquele cheiro. Até hoje eu sou louca pela chichá e quando engravidei até senti desejo pela rosquinha”, conta a amiga.
Mais uma vez os ponteiros do relógio andaram e foi a vez de Ecilda deixar a família há dois anos. O antigo condomínio onde ali moravam os Anache foi desfeito. Cada irmão seguiu seu próprio caminho, uns aqui e outros fora. Mas, quando o assunto é clichá há distância se torna um mero detalhe.
A tradição passada por gerações hoje é seguida em Campo Grande por Luiz e a irmã Maria Amélia, no empório da família.
Lá, as terças e quintas são sagradas por serem os dias da clichá, mas também são os dias de boas lembranças e saudade. “As vezes postamos as fornadas recém-saídas e os que estão fora mandam mensagens ou ligam na hora pedindo que a gente mande até pelo correio. O incrível é que mesmo depois de dias confinadas, quando a caixa é aberta nossos parentes dizem que o cheiro dela é ainda mais forte. Como aquele no condomínio”, diz Maria Amélia.
Sobre se há algum segredo na receita, Luiz não faz mistério e dispara. “Não vejo problema nenhum em passar. O que ninguém entende é que a verdadeira receita está no jeito de fazer. Você só aprende assim, com o passado”, garante.
A clichá é feita com farinha, fermento, açúcar, canela, erva doce, pimenta síria, um pouco de leite, leite condensado e a especiaria síria macha. Quem prefere não se arriscar com a receita pode encontrar o doce as terças e quintas, no Empório Mansur, na Antônio Maria Coelho.