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Meio Ambiente

Há 25 anos, MS perdeu 200 mil hectares para águas do Paraná em obra faraônica

A maior barragem do Brasil impactou cinco mil famílias ribeirinhas e deixou rastro de polêmica ambiental

Por Aline dos Santos | 22/03/2024 06:30
Construção da Usina de Porto Primavera, na divisa de MS com São Paulo. (Foto: Acervo A Crítica)
Construção da Usina de Porto Primavera, na divisa de MS com São Paulo. (Foto: Acervo A Crítica)

Há 25 anos, em 23 de fevereiro de 1999, Mato Grosso do Sul assistia à inauguração da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, também conhecida como Porto Primavera.

Na divisa com São Paulo, a maior barragem do Brasil - 10,2 quilômetros - custou ao Estado área de quase 200 mil hectares, forçou a remoção de Porto XV de Novembro (distrito de Bataguassu que sobreviva da pesca e olaria), impactou cinco mil famílias ribeirinhas e deixou rastro de polêmica sobre a consequência ambiental. A obra, que se arrastou por 20 anos (desde 1979), era remanescente dos projetos faraônicos e milionários da ditadura militar.

Euclides Alves dos Santos, 54 anos, foi testemunha dessa história e, tanto tempo depois, é mais um a se sentir dividido entre o “antigo XV Velho” e a Nova Porto XV, local criado pela Cesp (Companhia Energética de São Paulo) para abrigar os moradores que foram desalojados pelas águas do lago.

“Eu era da região de Bataguassu e tinha nove anos quando vim para Porto XV. Era uma vila que não tinha muita estrutura. Era rua de terra batida, sem água encanada. Tinha uns bares, açougue, o comércio era fraco”, rememora Euclides.

No fim dos anos 90, mas antes do lago da usina tomar a área da vila, ele trabalhava num frigorifico em São Paulo. “Eu ia de bicicleta. Eram quatro quilômetros e já estava dentro de São Paulo”. Desde 1964, havia uma ponte sobre Rio Paraná, que com extensão de 2,5 quilômetros fazia a ligação viária entre Mato Grosso do Sul e São Paulo.

O acesso à estrutura passou por mudanças e a ponte trocou de nome. De Mauricio Joppert da Silva (engenheiro e político do Rio de Janeiro) passou a se chamar Hélio Serejo (escritor e jornalista nascido em Nioaque).

Com formação do lago, a Nova Porto XV fica a 13 quilômetros de São Paulo, com toda a extensão tomada pelas águas.

A antiga Porto XV, distrito de Bataguassu que foi inundado pelo lago da usina. 
A antiga Porto XV, distrito de Bataguassu que foi inundado pelo lago da usina.

“O Rio Pardo e o Paranazão se encontravam debaixo da ponte e tinha uma ilha no meio. Depois do alagamento, veio a imensidão de água. O peixe desapareceu porque é água parada. Na época do calor, na beira do lago, você sente o cheiro de alga morta, de água parada. Tem que ir muito longe para pescar. O peixe na beirada são pequenos, não servem para comércio. Muitos abandonaram a profissão de pescador e passaram a ser piloteiro de barco para sobreviver", diz o morador.

A migração forçada traz lembranças traumática. “Não tinha emprego nenhum, foi terrível. Na outra Porto XV tinha muita cerâmica, olaria. A nova era mais longe do Estado de São Paulo e Bataguassu. Colocaram as pessoas nas casinhas, mas não tinha nada. Só a sombra das casas, não tinha um pé de planta na Nova Porto XV”, afirma o morador, que hoje trabalha com artesanato.

De acordo com ele, a Cesp transferiu estoque de argila do antigo povoado para a nova vila. A atual Porto XV tinha melhorias de infraestrutura, como água encanada, asfalto e coleta de lixo. A nova vila contava com 321 casa e quatro igrejas.

Antes de trabalhar com argila, que é a sua fonte de renda, ele foi funcionário da empresa contratada para o corte das árvores na área inundada. “Depois o lago encheu por completo e a firma do desmatamento foi embora. Passei bastante necessidade. Era eu, a mulher, duas crianças pequenas. E foi aí que Deus colocou a argila no meu caminho”, conta Euclides.

De tão importante para Bataguassu, a olaria está até na bandeira do município, com representação de fornos.

Vinte e cinco anos depois, Euclides descreve que o coração fica dividido. “Hoje, a gente vive em cima do muro. No antigo XV Velho, tinha abundância de peixe. mas não tinha infraestrutura. Aqui as árvores cresceram, a gente conseguiu aumentar as casas, tem água tratada e de qualidade. Mas a gente tem saudade do local onde morava, o coração fica bastante apertado porque a gente saiu obrigado”.

As águas forçaram a migração de 279 famílias e inundaram cemitério, duas igrejas e uma escola. “O cemitério do antigo XV Velho foi inundado, mas somente depois que retiraram os restos mortais de lá. A inundação veio e cobriu por completo, mas primeiramente foram retirados os restos mortais que foram levados para o cemitério de Bataguassu”.


Enxurrada de ações na Justiça 

Dos 240 mil hectares inundados, quase 200 mil ficavam em Mato Grosso do Sul. O motivo foi topográfico, nessa margem estava o terreno mais plano. Na obra,  mais de cinco mil famílias ribeirinhas foram impactadas, com destaque aos moradores de Porto XV (Bataguassu) e João André (Brasilândia), além das colônias de pescadores de Três Lagoas.

A área de influência direta abrange 11 municípios paulistas e seis sul-mato-grossenses: Três Lagoas, Brasilândia, Bataguassu, Santa Rita do Pardo, Anaurilândia e Batayporã.

Concebida nos anos 70, as obras foram iniciadas em 1979, sofrendo sucessivos atrasos. Ao contrário do que temos hoje, o EIA (Estudo de Impacto Ambiental) somente foi apresentado no ano de 1994, após avanço da legislação ambiental.

Conforme o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), o estudo foi o instrumento que possibilitou compreender o alcance dos impactos ambientais, sociais e econômicos que o empreendimento iria desencadear no Estado.

A partir de 1995, o Ministério Público propôs mais de 26 ações civis, resultando na celebração de acordo judicial no ano de 1998, com grande parte destinada a compensações dos danos.

No período de 2009 a 2014, após descumprimento dos acordos ambientais, foram ajuizadas novas ações civis públicas pelas promotorias de Bataguassu e Anaurilândia, resultando em num novo acordo judicial.

Além das multas cobradas pelo Ministério Público, a Cesp assumiu novas obrigações. Foram destinados recursos na compra de 40 mil hectares para a instalação do Parque do Rio Negro, além de investimento para a recuperação da microbacia na bacia hidrográfica do Rio Paraná.

Dadas às dimensões do reservatório, persistem danos ambientais, que estão sendo monitorados para fins de intervenção. O mais significativo consiste na constatação da continuidade do processo erosivo das encostas.

Conforme o Ministério Público, no ano passado, foram firmados dois TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) na comarca de Anaurilândia, em decorrência de terem sido detectados pontos críticos, cujas obras de proteção estão programadas para serem executadas neste ano.

“O tempo cobra seu preço”

O promotor Edival Goulart Quirino, que atua na área de meio ambiente em Bataguassu, afirma que “o tempo cobra seu preço”.

“Não há como encobrir ou mascarar os danos ambientais. Compete a toda a sociedade a eterna vigilância, e ao Ministério Público Estadual, cumprir seu papel constitucional de intervir na defesa do patrimônio ambiental sempre que for necessário”.

Segundo Quirino, além de acompanhar os relatórios anuais encaminhados pela empreendedora ao Ibama, o Ministério Público desenvolve nas escolas o projeto de educação ambiental “Piracema”, envolvendo 600 alunos.

“Para que novas gerações conheçam e não se esqueçam dos impactos ambientais causados em seus municípios pela UHE [Usina Hidrelétrica] Sergio Motta, despertando a consciência na preservação e recuperação do meio ambiente impactado e a altivez de exigir das autoridades públicas as intervenções que se fizerem necessárias”.

O reservatório de Porto Primavera tem extensão da aproximadamente 340 km, sendo pontos extremos o município de Batayporã a jusante, e Três Lagoas, a montante, com uma largura média de 10 km, com área de aproximadamente 2.250 km².


Coleção de equívocos

Na inauguração, em fevereiro de 1999, a imprensa nacional destacou os custos da usina, última remanescente de projetos faraônicos da ditadura, além da baixa geração de energia no comparativo com Itaipu, usina que entrou em operação comercial no ano de 1984.

Em matéria no Jornal Folha de São Paulo, a jornalista Cláudia Trevisan informou que “a usina de Porto Primavera, que será inaugurada terça-feira, é uma das obras mais emblemáticas dos equívocos que podem ser cometidos pela administração pública: demorou 19 anos para ficar pronta, graças a oito anos de interrupção nas obras, e custou quase três vezes mais do que previsto inicialmente”. O texto foi publicado em 21 de fevereiro de 1999.

A reportagem elenca que o lago encobriu uma região conhecida como “Varjão do Paraná”, que era habitat de cervo, jacaré-de-papo-amarelo e onça-pintada. A usina deveria custar R$ 1,4 bilhão, mas saiu por R$ 4 bilhões.

Anos antes, em agosto de 1997, o jornalista Rubens Valente, também da Folha de São Paulo, registrou os impactos para o meio ambiente e a sociedade. “A construção da hidrelétrica de Porto Primavera, na divisa entre Mato Grosso do Sul e São Paulo, está provocando um desastre ambiental e social na região do rio Paraná e seus afluentes, segundo denúncias de promotores da Justiça e ONGs (organizações não-governamentais)”.

Celso Martins comandou a Secretaria Estadual de Meio Ambiente em 1995. (Foto: Henrique Kawaminami)
Celso Martins comandou a Secretaria Estadual de Meio Ambiente em 1995. (Foto: Henrique Kawaminami)

“A Cesp não dava muita conversa para MS”

No ano de 1995, Celso Martins assumiu a Secretaria Estadual de Meio Ambiente com o desafio de analisar três estudos de impacto ambiental, sendo o da usina hidrelétrica o mais complexo. Ali, se tinha uma coleção de impactos: ambiental, público, social, privado, perda de área do Estado. Pela memória de Martins, chega também a informação de que foi necessário transferir uma comunidade ofaié-xavante. A aldeia com  28 famílias mudou de área dentro do município de Brasilândia.

Além da mudança das populações, outra situação complexa era perda geológica, no caso a argila de boa qualidade que ajudava a sustentar a economia da região.

“Outra grande dificuldade era que a Cesp não respondia para a Secretaria de Meio Ambiente do Estado. Eles entendiam que o licenciamento tinha que ser federal porque era o Rio Paraná e não davam muita conversa para Mato Grosso do Sul. Diante do não cumprimento das imposições que eram colocadas, nós embargamos a obra. Arrisco a dizer que se a gente não tivesse tido essa ousadia, a usina ia ser concluída sem MS sentar na mesa com a Cesp”.

Nesta etapa, ele recapitula que foi chamado de louco. Mas, uma semana depois, a diretoria da Cesp cruzou a divisa de MS com São Paulo para dialogar.

“Passaram a negociar com as prefeituras e o Ministério Público as compensações que tinham que ser feitas. Pelo acordo, a Cesp pagaria compensações até 2022 para o governo e prefeituras. Quando a gente começou essa conversa, não tinha tido nem audiência pública. Fizemos audiência em cada município, aferindo as demandas. Foi uma obra iniciada sem nenhum respeito a Mato Grosso do Sul”.

As compensações incluíram realocação das comunidades, criação do Parque Estadual do Ivinhema, resgate de animais, construção de hospitais, escolas e novas rodovias. A argila foi removida para ser usada por 30 anos, uma forma de minimizar o impacto para a comunidade.

Questionado se as compensações foram suficientes, Celso Martins responde que é um conceito muito difícil de se aferir quando se trata de mitigação de impacto ambiental. “Porque sempre vai ter um impacto de deslocamento. Foi realizado o previsto, mas não resolve 100%. A palavra suficiente é muito forte para isso. Não tem como negar. Foi justo?  É difícil a gente medir. Mas teve todo respeito democrático, republicano”.

Meio ambiente em segundo plano 

Em 10 de agosto de 1998, o senador Eduardo Suplicy (PT) relatou que visitou as obras da usina e se mostrava preocupado com o destino das pessoas e o impacto para a natureza. Na ocasião, pediu explicações ao Ministério do Meio Ambiente.

“Essas informações, Sr. Presidente, são muito importantes para todas as entidades que se preocupam com o meio ambiente e com o destino das populações afetadas por essa grandiosa obra, obra que tive a oportunidade de ver pessoalmente e constatar seu sentido espetacular. É uma das maiores usinas já construídas em nosso País e certamente causará um impacto extraordinário no que diz respeito à oferta de energia elétrica mas, obviamente, sua construção também causará um enorme impacto ambiental. Daí as importâncias dessas informações”.

Logo, Ramez Tebet , que era senador por Mato Grosso do Sul , fez um aparte, bastante preocupado com impacto ao meio ambiente.

“Meu Estado, naturalmente, é o mais atingido pela usina de Porto Primavera. A extensão territorial de nossas terras férteis que serão inundadas, Senador Eduardo Suplicy, atinge cerca de 200 mil hectares, o que positivamente causará graves prejuízos à sua população. Há anos, desde que cheguei a esta Casa, acompanho atentamente quase todas as reuniões realizadas em meu Estado junto à população que sofrerá os impactos da obra, representada pelos atuantes e dinâmicos prefeitos. Essas pessoas constituíram uma entidade de defesa de nossa população. Entendo ser preocupação de todos os brasileiros que se consiga fazer o melhor para que o meio ambiente seja preservado. Meio ambiente hoje significa qualidade de vida, e não podemos relegá-la ao segundo plano em nome de um progresso tecnológico e científico”.

Porto Primavera é a maior hidrelétrica do país em extensão de barragem. (Foto: Cesp)
Porto Primavera é a maior hidrelétrica do país em extensão de barragem. (Foto: Cesp)

A maior hidrelétrica em extensão de barragem

De acordo com a Cesp, a usina no Rio Paraná, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, representou um marco na história do setor energético brasileiro, sendo a maior hidrelétrica do país em extensão de barragem, com 10,2 km.

A Porto Primavera foi inaugurada em 1999, quando três das 14 unidades geradoras entraram em operação. A capacidade instalada é de 1.540 MW (megawatt), suficiente para abastecer um complexo urbano como a região metropolitana de Campinas, com mais de 3 milhões de habitantes.

"Há 25 anos a UHE Porto Primavera iniciou sua jornada, e hoje, num retrospecto podemos nos orgulhar de uma trajetória marcada por sustentabilidade, inovação e compromisso com o futuro. Ao longo dessas décadas construímos não apenas uma das mais relevantes hidrelétricas do país, mas também um centro de excelência em pesquisas voltadas para novas tecnologias em geração de energia renovável. Acreditamos que este seja o nosso maior legado, fornecer a energia necessária para a construção de um mundo mais sustentável ", diz Leonardo Gomes, Diretor de Operação e Manutenção da companhia.

 Após privatização da Cesp em 2018, a UHE Porto Primavera iniciou um processo de transformação e modernização. Em 2022, a empresa se reconfigurou. No ano passado, a UHE Porto Primavera gerou 922,4 MW médios, o que correponde a um aumento de 19,6% em comparação ao ano anterior (771 MW).

Quanto aos impactos ambientais, a Cesp aponta que cumpre rigorosamente com a legislação e as obrigações previstas no contrato de concessão e na licença ambiental da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera.

"A empresa mantém programas e projetos voltados à proteção da biodiversidade nas áreas de influência direta e indireta do empreendimento, com o objetivo de promover a conservação e recuperação de áreas nas margens do reservatório, a proteção da ictiofauna, fauna e flora, bem como atua no monitoramento da qualidade da água do Rio Paraná", informa a empresa.

A Cesp destaca que mais de 65 mil hectares de áreas protegidas são fiscalizadas e preservadas , contribuindo para a manutenção da quantidade dos recursos hídricos e da biodiversidade.

"Um exemplo é a Reserva Particular do Patrimônio Natural Cisalpina, uma unidade de conservação criada pela empresa em 2007 e ocupa mais de 3,8 mil hectares no município de Brasilândia. A Cesp também apoiou a criação e segue contribuindo com a manutenção do Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, sendo essa a primeira unidade de conservação do Mato Grosso do Sul".

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