Monitoramento da Marinha mostra Rio Paraguai em nível dramático
Sem chuvas, Pantanal sofre com seca mais intensa dos últimos 22 anos
“O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”. A profecia de Antônio Conselheiro, líder messiânico e personagem do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, aparece diminuta no “mar” do Pantanal sul-mato-grossense. É o rio Paraguai, principal curso d’água da região e responsável, junto com seus afluentes, pela imagem serpenteada vista como símbolo do bioma.
Com a licença do exagero, é mais ou menos assim que territórios antes alagados, hoje estão secos. Parcelas do Pantanal da região de Corumbá, que nos últimos anos costumavam estar submersos nesta época, hoje têm fogo no lugar de água. Com a falta de chuvas, que têm minguado ao menos desde 2017, locais como o Itagiloma, próximos da cidade de Corumbá, são hoje território dos incêndios.
O Campo Grande News tem acompanhado o difícil trabalho de combate às chamas no Pantanal selvagem, com milhares de hectares consumidos pelo fogo desde junho. No Itagiloma, a chamada biomassa do rio – plantas aquáticas e outros materiais – sem água, secaram e tornaram-se combustível para o fogo.
Em meio à isso, a reportagem levantou que no lugar da chuva vem se instalando, cada vez mais, regime de seca prolongada no Pantanal de Mato Grosso do Sul. Dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) indicam que de janeiro de 2017 até agora, a região passa pela pior seca dos últimos 22 anos.
É o que explica a pesquisadora do Centro e doutora em meteorologia pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ana Paula Cunha. Ela monitora os períodos de seca e conforme indica em gráfico enviado ao Campo Grande News, o mês de março deste ano foi, até agora, o pior.
“O impacto é mais severo se a seca se prolonga, se a seca vai perdurando é impacto na agricultura, abastecimento público, distribuição de energia, e por essa razão temos visto hoje impacto nos recursos da região”, diz ela. O Cemaden publica relatórios mensais sobre os índices de seca.
Ana Paula mostra outros gráficos e cita que com menos chuvas e estiagem que se prolonga, o Patanal tem registrado temperaturas extremas “dois ou três graus” acima do esperado para a época. Segundo a pesquisadora do clima, toda a região centro-oeste tem sofrido com a seca prolongada. Mais combustível para queimadas.
“O Centro-Oeste tem tido persistência de condição de seca, se você tem pouca produção de folhas, de biomassa, e se tem falta de água, a vegetação esquenta. Você está produzindo menos verde, e vegetação está ficando mais quente, seca, não assimila água em camadas profundas”, diz.
Diretor do IHP (Instituto do Homem Pantaneiro), Angelo Rabelo conta estar ouvindo, nas regiões visitadas das reservas particulares, que as condições estão assustando quem vive no interior do Pantanal. O IHP tem projetos na região da Serra do Amolar e afirma que os “pantaneiros” citam seca inédita nos últimos 30 anos e que a “maioria das regiões que deveriam estar alagadas não estão”.
Diretor presidente da Ecoa, André Luiz Siqueira afirma que pesquisadores ligados à ong que monitoram toda a grande bacia do prata, da qual parte também o Paraguai, têm apontado para o que parecer ser a entrada do Pantanal em regime mais intenso de secas.
“O que nós estamos monitorando dentro da bacia como um todo, dentro da bacia do prata, o que nós estamos analisando, por um grupo internacional, parece sim que se encaminha uma crise hídrica em toda a bacia”, afirma.
O desmatamento é considerado, hoje, o principal fator para alterar regimes de chuvas em todo o mundo. Além da cultura tradicional do Pantanal ligada à pecuária, outras culturas extensivas tem ocupado o território, a exemplo da soja, que na avaliação de André, é hoje a principal “curva” na tradição agropastoril do bioma.
E não é apenas local. Pesquisadores têm afirmado que a chuva mudou também com a piora no desmate da Amazônia. É o fenômeno chamado de “rios voadores”, a imensa camada de umidade que sai da floresta amazônica e é espalhada por todo o Brasil pelas correntes de vento.
Outra atividade, diretamente ligada à manutenção do agronegócio, são as barragens para gerar energia ou drenar o território. A Ecoa tem mapa interativo onde é possível visualizar a atividades das hidrelétricas em toda bacia do alto Paraguai, incluindo as que ainda estão em construção.
Ele cita que o rio Paraguai e seus afluentes “são o principal regulador de incêndios no Pantanal”. “Se o rio Paraguai tem uma cheia regular para alta, se você tem uma situação convergente de chuvas, e a gente passou décadas com esses fenômenos, você tem milhares de hectares inundados”, explica.
“Hoje o que mais tem de prejuízo são as barragens. A gente acompanha dois estudos de caso no MT onde dois barramentos, eles literalmente dominam todo o ciclo hidrológico, já não existe os movimentos naturais de cheias e secas, de alguma maneira a gente já tem um número significativo de barragens”, diz André.
Monitoramento da Marinha sobre o nível do rio Paraguai mostra, em alguns trechos, o menor nível registrado ao menos desde 2013, conforme os dados. Em Ladário, por exemplo, o rio chegou a atingir 1,44 metro no mês de julho.
A pesquisadora do Cemaden comenta que neste cenário, quem mais sofre são “os pequenos” porque não têm condições de reverter a situação sem a água que chega “de forma natural”. “Quando tem secas como essa a grande produção dificilmente é afetada, quem é afetado são os produtores familiares, porque não possuem tantos recursos para enfrentar isso”, comenta.
André acredita que com o novo cenário, há uma demanda pela mudança da tradicional cultura de atear fogo para abrir pastagens no Pantanal, comum na pecuária e muito atrelada ao início de incêndios que depois ficam quase impossíveis de serem controlados.
“Esses hábitos têm que ser mudados, podemos estar enfrentando uma situação de ciclo de secas, Corumbá tem liderado rankings de incêndio no Brasil”, comenta André.
No fim, lembra Ana Paula, o alerta é que períodos atípicos de seca, em seguida, dão lugar a períodos atípicos de cheias: alagamentos e inundações.
“É sempre assim quando a gente tem meses recorrentes de seca, pode vir a chuva depois, a volta ao equilíbrio não é imediato e quanto mais intensa a seca, mais difícil fica para voltar a ter o equilibro, essa seca prolongada, os impactos ainda vão ser vistos por meses daqui para frente”, finaliza.