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Reportagens Especiais

"Não quero ver minha filha morta": desespero de mãe se repete ano após ano

Casos de feminicídio se repetiram em 2023, escancarando lentidão no combate ao machismo

Por Bruna Marques | 30/12/2023 07:30
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Corpo da mulher morta pelo marido coberto com lençol branco (Foto: Bruna Marques)
Corpo da mulher morta pelo marido coberto com lençol branco (Foto: Bruna Marques)

Diante de tantos casos de feminicídio noticiados em 2023 pelo Campo Grande News, com certeza a história da Natali Gabrieli da Silva Souza, assassinada com golpes de faca, pelo companheiro, no dia 1º de julho, foi a que mais me marcou.

Acostumada a presenciar diversos fatos bárbaros durante a cobertura jornalística e me chocar com muitos deles, ver a jovem morta na Rua Leopoldina de Queiroz Maia, no Bairro Parque do Lageado, coberta por um pano branco, com muitas crianças em volta, às 6h30, em um sábado de plantão, sem dúvida ficará para sempre na minha memória.

Eu e a equipe chegamos neste dia para trabalhar, às 6h, saímos para ir às delegacias fazer nossa ronda rotineira. Na Avenida Duque de Caxias, no caminho para a Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), onde vamos todos os dias saber o que aconteceu durante o plantão, vimos uma viatura da Polícia Civil passando em alta velocidade, com sirene e giroflex ligados, por coincidência, os policias também estavam indo em direção à delegacia.

Continuamos nosso trajeto. Quando cheguei na Deam, desci do carro e fui em direção à equipe. Em primeiro momento, soube que dentro da viatura estava Cleber Corrêa Gomez, de 30 anos, o suspeito de matar Natali. Dali em diante, comecei apurar e descobri que o rapaz havia matado a companheira durante a madrugada. O corpo da jovem ainda estava no local dos fatos.

Questionei os policias se o rapaz estava envolvido no caso da jovem Brenda Possidonio de Oliveira, de 25 anos, assassinada dois dias antes de Natali. Um dos policiais disse que não e informou que esse caso “infelizmente” era outro.

O repórter fotográfico Henrique Kawaminami ficou na delegacia aguardando para tentar fazer uma foto do suspeito e eu segui com o motorista para a Rua Leopoldina de Queiroz Maia. Chegando no local, a cena era de muita tristeza. Parte da via sem asfalto foi isolada com fita zebrada, pela Polícia Militar.

De um lado, a família da jovem chorava muito e lamentava o ocorrido. A mãe dela ficou o tempo todo dentro do carro, em choque, sendo amparada pelos parentes. Na outra esquina, a população se aglomerou para ver Natali caída no chão.

Lembro que enquanto a perícia realizava os procedimentos de praxe no local, as pessoas ficaram eufóricas esperando o corpo de Natali ser descoberto. Atrás de mim, uma mulher da família disse “tiraram o pano”. A mãe da jovem chorava, em desespero, e dizia: “não quero ver minha filha morta”. Imagem que jamais será esquecida por mim.

Natali foi morta aos 18 anos, após discussão por ciúmes (Foto: Reprodução/Redes Sociais) 
Natali foi morta aos 18 anos, após discussão por ciúmes (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

O crime - O casal bebia em casa com os irmãos do autor, na Rua Maria Del Horno Samper. Depois que os convidados foram embora, os dois passaram a discutir, foi quando Cleber pegou uma faca e golpeou a vítima. Após o crime, o homem fugiu e foi preso na casa da irmã, próximo dali, na Rua Armando Franco.

Segundo a aposentada Ângela Custódio Rocha, de 51 anos, avó da vítima, o casal vivia brigando e se separando. “Ontem, eles estavam bebendo. Ele usava droga e quebrou a casa toda. Cortou o cabelo da minha neta e deu uma facada nela dentro da casa”, disse a mulher.

Ainda conforme a avó, Natali levou o primeiro golpe dentro da residência. Na sequência, a vítima correu para a rua com a filha do casal, de 1 ano e 4 meses nos braços, mas foi alcançada e esfaqueada novamente, até ser morta. Ela foi atingida no pescoço, costas, rosto e nos braços, indicando que tentou se defender. A roupa da criança ficou toda ensanguentada e foi socorrida pelos vizinhos.

Números - Assim como Natali, mais sete mulheres foram mortas pelos maridos, namorados ou ex-companheiros, em Campo Grande, neste ano. Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no dia 20 de julho, mostrou que Mato Grosso do Sul é o segundo estado no país onde homens mais matam mulheres.

Em todo o Estado, somente em 2023, foram registrados 32 casos de feminicídios. Sendo que 8 deles ocorreram em Campo Grande. A última vítima foi Gilka Simony Nunes, de 47 anos, morta com nove golpes de punhal, na tarde do dia 4 de dezembro, no Bairro Moreninhas. O marido da vítima, Daniel Souza Lirio, 42, foi preso em flagrante.

Segundo a delegada Elaine Benicasa, titular da Deam, Daniel disse em depoimento que pouco antes de o crime acontecer, discutiu com a vítima pelo fato de Gilka sustentar o filho, que atualmente está preso por tráfico de drogas.

O casal se relacionava há 7 anos, não tinha filho juntos, mas o rapaz era o motivo das discussões, conforme o autor. Um dia antes do crime, no período da tarde, a vítima estava no quarto descascando uma laranja, quando novamente os dois começaram a discutir pelo mesmo motivo.

Gilka Simony Nunes, de 47 anos, morta pelo marido (Foto: Reproduçã/Redes sociais)
Gilka Simony Nunes, de 47 anos, morta pelo marido (Foto: Reproduçã/Redes sociais)

O autor, então, deu um tapa no rosto de Gilka que reagiu e desferiu golpes de faca no braço do marido. Daniel, que mantinha um punhal debaixo do travesseiro, pegou a arma e desferiu um golpe no peito da mulher. Ele disse que não se lembrava dos outros golpes. No corpo da vítima, foram encontrados ferimentos no tórax, nas costas, no ombro e na virilha.

Depois do crime, o homem saiu de casa e foi em direção à BR-163 com a intenção de cometer suicídio, mas foi encontrado sujo de sangue pela equipe da PRF (Polícia Rodoviária Federal). A vítima foi encontrada morta dentro de casa, no cruzamento das ruas Sambacuim e Zínia. Havia muito sangue no imóvel.

Crimes bárbaros – A primeira vítima de feminicídio em Campo Grande neste ano foi Claudineia Brito da Silva, 49 anos, assassinada com uma facada no pescoço, no dia 13 de janeiro, pelo companheiro Hércules José Soares, 43. Na época do crime, o suspeito foi preso em flagrante no Bairro São Francisco.

Claudineia chegou a ser socorrida, mas não resistiu aos ferimentos e morreu na Santa Casa. Hércules tinha sido preso por violência doméstica em 2010. Ele mostrou para os policiais onde escondeu a faca utilizada no crime, apresentava estar embriagado e não soube informar o motivo da agressão.

Claudineia, primeira vítima de feminicídio no Estado em 2023 (Foto: Reprodução/Facebook)
Claudineia, primeira vítima de feminicídio no Estado em 2023 (Foto: Reprodução/Facebook)

No dia 28 de janeiro, 15 dias após a morte de Claudineia, uma monitora de alunos, 49 anos, foi esfaqueada pelo ex-marido, em uma galeria de lojas na Rua Francisco Pereira Coutinho, no Bairro Nova Lima.

A vítima estava a caminho do trabalho, quando foi abordada na rua pelo ex, 52 anos, e os dois começaram a discutir. Para tentar se proteger, a vítima buscou um local movimentado e entrou no pequeno centro comercial, mesmo assim, foi perseguida e atingida por várias facadas nas costas, abdômen e pescoço.

O suspeito tentou fugir a pé, mas foi abordado por um borracheiro que presenciou as cenas de agressão e conseguiu conter o agressor até a chegada da Polícia Militar. A vítima foi resgatada pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), mas não resistiu aos ferimentos e morreu no hospital.

Casos de ciúmes - A técnica em enfermagem Karolina Silva Pereira, morta a tiros aos 22 anos, foi a terceira vítima de feminicídio na Capital em 2023. A jovem foi baleada no dia 30 de abril, pelo ex-namorado Messias Cordeiro da Silva, 25. Ela chegou a ficar internada na Santa Casa, mas não resistiu aos ferimentos e veio a óbito no dia 2 de maio.

Karolina foi ferida por dois tiros, no Jardim Colibri, um deles quando estava de costas, correndo do assassino. Ela foi atingida no crânio, chegou a ser intubada na viatura de socorro e levada à Santa Casa em estado grave. No mesmo dia, o hospital abriu procedimento de morte encefálica.

Na ocasião, Luan Roberto de Oliveira Oliveira, 24, amiga de Karolina também foi atingido e morreu no local. O rapaz e a moça eram colegas de trabalho, ele como motoentregador de uma pizzaria, localizada no Bairro Guanandi, onde ela havia sido contratada há uma semana.

Era a quinta vez que Luan acompanhava Karolina do trabalho até em casa, porque ela já havia relatado o medo de ir sozinha. Eles saíram da pizzaria e em frente à casa dela, no Jardim Colibri, foram surpreendidos por Messias.

Após atirar em Karolina e Luan, o assassino ligou para a mãe da menina, confessando o crime, e mandou mensagens de áudio. "Queria saber como ela tá? (sic)". Em seguida, afirma para a mulher que atirou na filha dela.

Na sequência dos disparos, Messias correu até a motocicleta que havia deixado na esquina e, segundo o interrogatório, tentou tirar a própria vida. "Desferindo duas vezes com a sua arma, mas não conseguiu. Então, ele ligou para a mãe, que pediu que voltasse para casa e lá conversou com outros familiares", contou a delegada titular da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), Elaine Benicasa.

Karolina Pereira, em foto postada no Instagram (Foto: Redes sociais)  
Karolina Pereira, em foto postada no Instagram (Foto: Redes sociais)

Como viu o cerco fechando, Messias procurou um advogado e se entregou na Deam. À polícia, ele contou que foi tomado por uma "raiva incontrolável" ao ver Karolina beijando Luan. Suspeito foi indiciado por homicídio qualificado pelo motivo fútil, emboscada e pela impossibilidade de defesa da vítima, no caso de Luan Roberto. Já de Karolina, responde por feminicídio.

Outro caso cruel de feminicídio foi o da jovem de 25 anos, identificada como Brenda Possidonio de Oliveira. Ela foi morta a facadas na noite do dia 29 de junho, no Bairro Vila Natália, em Campo Grande. O crime aconteceu na Rua Janaina Chacha de Melo, por volta das 23h, na frente do filho dela de apenas 7 anos. O autor do crime é o Lyennan Camargo de Mattos Oliveira, 25, namorado da vítima.

A Polícia Militar foi acionada, mas quando chegou no local, Brenda já estava morta na calçada da vizinha. Equipe do Corpo de Bombeiros também foi acionada e constatou o óbito. Aos policiais, vizinhos disseram que ouviram gritos na rua e a criança dizendo "Você matou minha mãe" e quando saíram, encontraram Brenda caída no chão com o pescoço sangrando e pedindo socorro. A vítima chegou a levantar, atravessou a rua e caiu novamente.

O filho da vítima chegou a correr atrás do autor, mas voltou e tentou estancar o sangramento no pescoço da mãe. Ele foi acolhido na casa de uma das vizinhas até a chegada da polícia.

Brenda e o filho, que viu a mãe ser assassinada (Foto: Reprodução)  
Brenda e o filho, que viu a mãe ser assassinada (Foto: Reprodução)  

Lyennan foi encontrado em casa. Quando a polícia chegou ao local, foi informada por familiares de que ele teria tentado suicídio. Equipe do Corpo de Bombeiros foi acionada e o rapaz foi levado para a Santa Casa inconsciente. Antes de tentar tirar a própria vida, o suspeito mandou mensagem para a mãe de Brenda dizendo que havia matado a jovem.

Suicídio e feminicídio - No dia 8 de agosto, Danilo Peixoto da Silva, de 19 anos, matou a tiros a companheira Dantielle Vilalba Acunha, 29. Após o crime, ele atirou contra a própria cabeça e também morreu. O casal foi encontrado em uma casa na Rua Isaltino Leiria de Paula, no Jardim Los Angeles, em Campo Grande.

A avó do rapaz, que morava no mesmo quintal, na casa da frente, foi quem encontrou os dois caídos no chão. Ela foi chamar o casal para tomar café da manhã, viu os corpos e saiu pedindo socorro na rua. O Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) foi acionado e constatou os óbitos.

Dantielle foi morta pelo companheiro com um tiro na cabeça em Campo Grande (Foto: Reprodução)
Dantielle foi morta pelo companheiro com um tiro na cabeça em Campo Grande (Foto: Reprodução)

Segundo informações de moradores da região, o casal morava há pelo menos três anos no imóvel e as brigas eram constantes.

Emboscada – Antes de ser morta com seis tiros, Gabriela de Oliveira Belantani, 18 anos, foi espancada pelos dois suspeitos da execução. Um deles, identificado apenas pelo primeiro nome, Anderson, conhecido como "Maconha", foi preso preventivamente. O crime ocorreu no dia 10 de novembro, no Jardim Botânico, em Campo Grande.

As delegadas da Deam, Elaine Benicasa e Analu Ferraz, deram informações sobre o caso durante coletiva de imprensa, no dia 20 de novembro. Segundo a titular, Benicasa, a prisão de Maconha ocorreu na sexta-feira (17), graças à investigação que contou com análise de câmeras de segurança e depoimento de testemunhas.

Uma delas, o ex-marido de Gabriela chegou a ser apontado como suspeito, mas a investigação descobriu que ele testemunhou o crime. Inclusive, o depoimento do ex-marido foi essencial para a identificação dos dois autores da execução: Lucas Henrique, conhecido como "LK", e Maconha.

Segundo a delegada Analu, Gabriela "ficava" com Anderson, mas também chegou a ter um caso amoroso com LK. A jovem teria ameaçado contar para a namorada de Maconha sobre o caso que tinham, o que provocou a "ira" de Anderson, segundo a polícia. Então, naquela madrugada, junto com LK, espancaram a vítima.

Gabriela de Oliveira Belantani assassinada no dia 10 de novembro (Foto: Redes sociais)
Gabriela de Oliveira Belantani assassinada no dia 10 de novembro (Foto: Redes sociais)

A jovem chamou a Polícia Militar e os dois conseguiram fugir. Na sequência, ela enviou mensagens para a namorada de Anderson contando sobre o relacionamento dos dois. Ainda mais furiosos, eles decidiram matar a vítima.

Então, durante a noite, os dois foram de motocicleta até o encontro de Gabriela. Maconha conduzia a moto, enquanto LK estava na garupa e efetuou os tiros. No momento que foi ferida, a vítima estava dentro do carro do vizinho, pois pediu carona para ir até a casa da mãe, justamente para fugir da dupla que a espancou. Ela foi socorrida, mas não resistiu.

Na delegacia, Anderson negou envolvimento amoroso com a vítima, mas mensagens no celular da jovem comprovam o caso. Os dois autores tiveram a prisão preventiva decretada, mas LK ainda não foi localizado e é considerado foragido da Justiça. Ele, inclusive, também é apontado como autor de uma tentativa de homicídio.

Levantamento - Em média, 36 mulheres são vítimas de feminicídio todo ano em Mato Grosso do Sul. O levantamento tem como base os números divulgados pela Sejusp (Secretaria Estadual de Segurança Pública) que contabilizou 295 registros desde 9 de março de 2015, quando foi instituída a lei tipificando o crime de violência contra a mulher.

Ao longo da instituição da lei, a maioria dos feminicídios do Estado foram de 137 mulheres adultas e 63 jovens com idade entre 18 e 29 anos.

Divulgado em março deste ano, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública constatou que, em 2022, 35 mulheres foram agredidas física ou verbalmente por minuto no Brasil. O levantamento mostra que 28,9% (18,6 milhões) das mulheres relataram ter sido vítima de algum tipo de violência ou agressão, maior percentual da série histórica do levantamento. O estudo destacou que quase 51 mil mulheres sofreram violência diariamente em 2022, ao passo que quase 6 milhões sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais. Metade das mulheres que sofreram algum tipo de violência disseram não ter feito nada após o ocorrido.

Perfil das vítimas - O levantamento constatou que 65,6% negras que sofrem com algum tipo de violência em todo o Brasil são mulheres negras com idade entre 16 a 34 anos.

Instituída em março de 2015, a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15) passou a tipificar os homicídios ocorridos contra mulheres. A lei considera feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.

Na ocasião, a nova legislação alterou o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) e estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Também modificou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), para incluir o feminicídio na lista.

Sete das oito vítimas de feminicídio em Campo Grande (Foto: Redes sociais)
Sete das oito vítimas de feminicídio em Campo Grande (Foto: Redes sociais)

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