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Lei 14.285/21 fragiliza proteção de APPs em área urbana consolidada

Thomaz Lipparelli (*) | 01/02/2022 13:30

O governo federal através da publicação da Lei 14.285/2021, de 29 de dezembro, alterou dispositivos do Código Florestal referentes a proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) em áreas urbanas. Modificou, também, o art. 22 da Lei 11.952/2009 e o art. 4º da Lei 6.766/1979.

A iniciativa transfere para os municípios e o Distrito Federal a competência para definir as faixas marginais de qualquer curso d’água perene ou intermitente em áreas urbanas consolidadas – sujeitas ao regime de preservação permanente – contrariando os parâmetros estabelecidos no inciso I, do caput do art. 4º do Código Florestal. Vale dizer, sendo da competência municipal (ou distrital) a determinação de áreas urbanas consolidadas, tem-se, agora, a competência local para definição de APP’s às margens de cursos d’água nessas áreas, independentemente de qualquer parâmetro mínimo estabelecido no Código Florestal.

Na prática, tais inovações legislativas implicam, na diminuição, a critério do legislador local, da extensão de APP’s em áreas urbanas consolidadas, as quais, até então, deveriam observar os padrões estabelecidos pelo Código Florestal, que veicula norma geral sobre a matéria. Esse aspecto já permite visualizar fortes traços de inconstitucionalidade, uma vez que tais disposições violam a competência privativa da União no tocante à definição de normas gerais mais protetivas, que são de observância compulsória por todos os entes políticos em matéria ambiental (CF, art. 24, VI, e parágrafo único).

É amplo o debate acerca do mecanismo de repartição de competências na estrutura do Estado Federal brasileiro, que, como sabido, adota o modelo de federalismo cooperativo. No intrincado desenho de um condomínio legislativo, no qual União, estados, Distrito Federal e municípios compartilham competências em várias matérias – entre as quais a proteção do meio ambiente –, a Constituição da República – núcleo irradiador da chamada competência das competências – estabelece a competência da União, dos estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, inciso VI), como também sobre responsabilidade por danos ao meio ambiente (art. 24, inciso VIII).

Nesse espaço de competência legislativa concorrente, a competência da União diz respeito à definição de normas gerais, reservando-se aos estados competência suplementar – supletiva ou complementar (CF, art. 24, §§2° e 3°).

No que se refere aos municípios, a competência legislativa desses entes políticos relaciona-se com a predominância de assuntos de interesse local (CF, art. 30, I), cabendo-lhes, também, suplementar a legislação federal e estadual, naquilo que for pertinente (CF, art. 30, II). Têm os municípios competência legislativa suplementar, podendo apenas regulamentar ou suprir lacunas deixadas pela legislação federal e estadual, ajustando-a ao interesse local.

As competências legislativas municipais são balizadas pelo princípio da predominância do interesse local. Isso também ressalta do disposto no art. 182, CF, que confere aos municípios competência para elaboração de seus respectivos planos diretores com vistas à ordenação do desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar dos seus cidadãos. Decerto que por interesse local não se deve entender interesse único e exclusivo do município, mas sim aquele que se entrelaça predominantemente com a realidade comum.

Além disso, em se tratando de normas gerais, a União veicula parâmetros vinculatórios baseados na ideia de promoção do interesse nacional comum, sem prejuízo da edição de normas particularizantes relativas a interesses regionais ou locais.

Isso significa, noutras palavras, que, existente norma de caráter geral que ofereça um determinado padrão de proteção ambiental, o exercício da competência concorrente pelos demais entes políticos hão de observar necessariamente o parâmetro normativo ali veiculado. Ou seja, novas normas podem ser estabelecidas para reforçar os níveis de proteção já fixados em norma editada pela União, mas nunca flexibiliza-los. Por outro lado, não é dado a União, por lei federal, abdicar da necessidade de observância da norma geral, conforme prescreve a própria Constituição Federal. Uma vez fixada a norma geral pela União, é cabível sua suplementação (CF, art. 24, § 2º), mas não sua desconsideração. É bem claro, pois, o caráter residual da competência legislativa suplementar dos estados, municípios e do Distrito Federal. E essa residualidade se revela mais densa, ainda, em se tratando da competência municipal, ante a cláusula delimitadora interesse local, prevista no art. 30, I, CF.

É possível afirmar, portanto, que, no exercício da competência legislativa dos municípios (CF, art. 30, I e II), especialmente em matéria ambiental, o sistema constitucional não tolera que isso se desenvolva de forma alheia – e, eventualmente, contrária – aos padrões gerais estruturados pela norma federal para aplicação em nível nacional, com o propósito de oferecer um patamar mínimo de proteção às áreas de preservação permanente.

Assim, ao abrir mão desses padrões vinculatórios, “liberando” municípios e o Distrito Federal do piso de proteção veiculado na norma geral consubstanciada no art. 4º, I, do Código Florestal, a nova legislação subverte o que está estabelecido pela Constituição da República à norma geral, em flagrante desrespeito ao disposto no art. 24, VI, e parágrafo único, da CF.

Em tese, o município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e Estado, no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, inciso VI, 30;30, incisos I e II da Constituição Federal).

As alterações normativas decorrentes da Lei 14.285/2021 fragilizam a proteção do meio ambiente, especificamente no que se refere às áreas de preservação permanente em áreas urbanas, na medida em que favorecem o estabelecimento de faixas marginais em tamanhos distintos – e, pois, menores – que os patamares previstos no Código Florestal.

Nunca é demais lembrar que o regime de preservação permanente para a vegetação ripária seja em área rural, seja em área urbana, decorre de sua múltipla função ambiental de proteção dos cursos d’água, evitando assoreamentos, estabilizando o leito hídrico, filtrando detritos, entre outras funções (Código Florestal, art. 3º, II).

A autorização legal para fixação de faixas marginais ao arrepio do patamar mínimo fixado na norma geral veiculada pela União fragmenta perigosamente a definição de faixas marginais em cursos d’água que banham mais de um município, afetando sua preservação como um todo. Favorece, como dito acima, a redução desses espaços especialmente protegidos, em nível local, implicando, a médio prazo, o acirramento da crise hídrica no país.

Essa guinada legislativa caminha em descompasso com o disposto no art. 225, § 1º, inciso I, da Constituição da República, segundo o qual incumbe ao Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e promover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”. Viola-se, desta forma, o dever constitucional imposto ao Estado (lato sensu) e à coletividade de promover o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, protegendo e restaurando processos ecológicos essenciais. Dito de outra forma, a delegação aberta e desmedida de competência para os entes subnacionais restringe indevidamente o conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente sadio, ao mesmo tempo em que descumpre o dever estatal de adequada e efetiva proteção ao bem jurídico. Além de violar o art. 225, § 1º, inciso I da CF, oportuniza-se grave e inconstitucional regressão a níveis de proteção inferiores aos já estabelecidos pelo Código Florestal, configurando- se, sob esse ângulo, ofensa ao princípio da proibição do retrocesso socioambiental.

Não se questiona, neste caso, a existência de espaços institucionais definidos pela Constituição Federal, destinados à livre e democrática formulação e implementação de escolhas de políticas públicas. O que colocamos como ponto de reflexão é a necessidade de reconhecimento e observância, que não podemos retroceder.

No caso em análise, o regime de garantia de áreas de preservação permanente acha-se, agora, flexibilizado pela nova lei, sem que se verifiquem circunstâncias de fato determinantes e legitimadoras, sobretudo do ponto de vista técnico. E essas circunstâncias, na realidade, em vez de sugerirem fragilização, assinalam crescentemente em direção à necessidade de fortalecimento dos níveis de proteção de mananciais e cursos d’água, ante o já mencionado quadro de escassez progressiva de recursos hídricos ora verificado. Daí a apontada violação ao princípio da vedação do retrocesso ambiental.

Não obstante a ausência de previsão normativa expressa, o princípio da proibição do retrocesso ambiental acha-se presente na ordem constitucional brasileira. Identifica-se como um princípio geral estruturante que atua, a um só tempo, como trava impeditiva de regressão a patamares inferiores de proteção e como mola-mestra da atuação do Estado administrador e do Estado legislador na seara ambiental.

Por último – e nem por isso menos relevante –, as modificações trazidas pela Lei 14.285/2021 geram insegurança jurídica, especificamente no que se refere ao regime jurídico de APP’s. Sim, porque, caso subsistam as disposições legais questionadas, os mais de 5.560 municípios existentes na Federação brasileira estão agora autorizados a dispor de forma distinta sobre faixas marginais em curso d’água em regiões urbanas, com dimensões/larguras díspares e sem obrigatoriedade de observância de um parâmetro mínimo, a depender, apenas, da definição das “áreas urbanas consolidadas”. Vejamos o caso de Bonito, em Mato Grosso do Sul, que será seriamente afetado por tal vinculação normativa.

Salta aos olhos a fragilização do sistema jurídico-normativo que, a partir do Código Florestal, busca definir critérios minimamente homogêneos para promover a higidez e a integridade de espaços territoriais especialmente protegidos, como é o caso de APP’s. Afinal de contas, como apontado acima, grande parte desses cursos d’água percorre mais de um município. Sendo assim, a fragmentação do parâmetro (largura) de implementação do regime de preservação permanente enfraquece o grau de proteção originariamente definido na norma geral.

Esse tema, por sua relevância, é de interesse geral (nacional), não havendo, no caso, predominância de interesse local suficientemente legítimo a justificar a desconsideração de um parâmetro mínimo veiculado na norma de caráter geral. Tem-se, por esse ângulo, um cenário propício à quebra de segurança jurídica no que toca à proteção de APP’s em margens de cursos d’água.

Note-se, como reforço argumentativo, que, em se tratando de gerenciamento e implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei 9.433/1997 estabelece, no art. 31, que os “Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estaduais de recursos hídricos”.

Isso assinala a desejável articulação entre ação governamental e políticas setoriais em nível local com as políticas federal e estadual de recursos hídricos, significando, noutras palavras, que estratégias de proteção de APP’s à margem de cursos d’água, não podem ser instituídas em descompasso com padrões mínimos de proteção estabelecidos em nível nacional. Tal linha argumentativa reforça a conclusão quanto ao cenário de insegurança jurídica que decorre da outorga de competência aos municípios para dispor de forma diversa daquela indicada no art. 4º, I, do Código Florestal, ao tangenciar a desejável atuação concertada dos entes políticos com base na normatividade de caráter geral.

Em síntese, a delegação de competência aos municípios e Distrito Federal, veiculada na Lei 14.285/2021 apresenta fortes traços de inconstitucionalidade, sendo inteiramente adequada e necessária sua arguição perante o STF, porque: ao autorizar uma nova definição de “faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo” [art. 4º do Código Florestal], desrespeita o art. 24, VI e parágrafo único, da Carta, violando a competência privativa da União no tocante à definição de normas gerais mais protetivas, que são de observância compulsória por todos os entes políticos em matéria ambiental;

Gera insegurança jurídica, ao possibilitar a definição de milhares de parâmetros distintos de faixas marginais de cursos d’água em áreas urbanas consolidadas, nos diversos municípios brasileiros e no Distrito Federal, sem observância do elemento uniformizador previsto em norma geral editada pela União; fragiliza os padrões de proteção em APPs, violando o princípio da proibição de não regressão, bem como o dever constitucional do Poder Público de proteger e restaurar processos ecológicos essenciais; restringe indevidamente o conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente sadio, ao mesmo tempo em que descumpre o dever estatal de adequada e efetiva proteção ao bem jurídico.

Com essas considerações, pontuo, em caráter de sua inconstitucionalidade, como limite de possibilidade de interpretação e aplicação das disposições da Lei 14.285/2021, que, numa interpretação conforme a Constituição, eventual definição de faixas marginais de qualquer curso d’água (APP) distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput, do art. 4º do Código Florestal, deve observar obrigatoriamente os patamares mínimos ali fixados, respeitando-se, dessa forma, o disposto no art. 24, § 1º, CF, que confere caráter de generalidade e vinculação ao comando editado pela União.

Seja como for, faz-se necessário, urgente e oportuno deflagrar o exercício da jurisdição constitucional. Cabe a todo cidadão estar atento as mudanças em curso, sobretudo aquelas que colocam em risco a nossa manutenção e a proteção da natureza. Denunciar aos governantes e legisladores é dever de todos!

(*) Thomaz Lipparelli é biólogo e PhD em Ciências Biológicas pela UNESP.

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